quinta-feira, 22 de maio de 2008

Capítulo III - A dama do cabaré

Rio de Janeiro, 04 de maio de 1937:

Vila Isabel inteira parou. O corpo foi levado para a igreja, teve missa de corpo presente. Depois voltou pra casa, porque, naquela época, os velórios eram feitos em casa. Tinha muita gente. Chegou até a desaparecer a bolsa de minha sogra, com documentos e tudo. Dias depois ela recebeu um telefonema para que fosse procurar a bolsa na Igreja Santa Rita de Cássia. Chegou lá e encontrou a bolsa com os documentos. Dinheiro que é bom, nenhum”.

O relato de Lindaura descreve parte do ocorrido no velório do seu marido. Sem chegar às três décadas, Queixinho, conforme apelido de infância, foi velado no bairro onde cresceu e viveu a maior parte dos seus dias. Se o fórceps, que o puxou do descanso materno, causou-lhe o afundamento do queixo e a piada de amigos, sabe-se que Queixinho nunca caminhou triste, com olhar cabisbaixo, ou se escondeu devido à notável deformidade.

Enganam-se os que atribuem ao violão a solução encontrada para um suposto isolamento social por feiúra. Os relatos daqueles que o conheceram nos ensinam outra história. Tratava-se de um peralta, admirado por muitos. De um contestador da disciplina religiosa do colégio São Bento. De um apaixonado pelas meninas, algumas registradas em desenhos não comportados. De alguém que desde cedo demonstrou sua vocação para a rima, sempre sedenta de cotidiano.

Sob o apito da fábrica de tecidos nasceu o piadista, o traquina, o líder da rua. Vinte e sete anos depois, sob o repique dos sinos da Igreja Santa Rita de Cássia, foi rezada, em sua homenagem, a missa de corpo presente. Na minha opinião, Queixinho foi o compositor mais importante da história de nossa música popular. O Rio de Janeiro das décadas de trinta e de quarenta está registrado em sua obra. Podemos dizer que muito do Brasil se compreende a partir dos seus versos. No último verão, pude caminhar por algumas partituras, petrificadas em sua homenagem na calçada da avenida principal do bairro de Vila Isabel. Ou melhor, o bairro de Queixinho, o bairro de Noel.

Quando eu morrer não quero choro nem vela
Quero uma fita amarela gravada com o nome dela”

Lançado em 2006, o longa-metragem “Noel - poeta da vila” é mais um exemplo do uso de uma forma de linguagem à qual muitos recorrem ao reproduzir a vida e a obra de personagens históricos: a caricatura. A impressão que fica é a de que Noel viveu em função da boemia, de sua polêmica com Wilson Batista, de seu amor por Ceci, uma bela dançarina de cabaré, e de seus problemas de saúde. Como se ele tivesse dedicado sessenta músicas para cada um dos temas. Todos sabem que são fatos marcantes em sua vida, mas insistir nestes é o mesmo que impor a imagem do menino constrito ao seu queixo afundado. Os diálogos do filme são pueris e, os personagens, repletos de trejeitos. Os melhores momentos ficaram por conta do pai de Noel, um inventor de utensílios para o cotidiano, e das coxas de Ceci, no caso, de sua intérprete, Camila Pitanga. Ceci foi de fato a grande paixão do Poeta da Vila, mas não a única fonte de inspiração em matéria de amor.

Já os malandros da Lapa antiga, retratados no filme, desanimam qualquer aspirante ao ofício. Malandro que é malandro não entra no boteco sorrindo à toa, dando peteleco em orelhas, ou posando de conquistador de mulheres. Isso é papel do babaca. “Deixa de arrastar o seu tamanco”, já pedia Noel. O verdadeiro malandro age quieto, não divulga. Se acusado, nega. Sob provas, não assume. Pela honra, reage. Sendo preciso, corre. É guiado por objetivos específicos, e nem sempre tem na malandragem o seu ideal de vida, ainda que possa levar a vida na malandragem. Eis o relato de um autêntico malandro, discípulo do Sete Coroas, considerado por muitos o maior espécime do gênero que a Lapa já conheceu. Sete Coroas morreu em 1923 e não chegou a ver a maioria dos feitos de seu aprendiz, João Francisco dos Santos. A entrevista concedida à revista O Pasquim data de abril de 1971.

Eu fui acusado de ter matado o falecido compositor Geraldo Pereira com um soco. Mas o caso foi o seguinte: eu entrei no Capela e estava sentado, tomando um chope. Ele chegou com uma amante dele, pediu dois chopes e sentou ao meu lado. Aí tomou uns goles do chope e cismou que eu tinha que tomar o chope dele e ele tinha que tomar o meu. Ele pegou o meu copo e eu disse pra ele: ‘olha, esse copo é meu’. Então eu peguei o meu copo e levei para a minha mesa. Aí ele levantou e chamou pra briga. Disse uma porção de desaforos, uma porção de palavras obscenas, eu não sei nem dizer essas coisas. Aí eu perdi a paciência, dei um soco nele, ele caiu com a cabeça no meio fio e morreu. Mas ele morreu por desleixo do médico, porque foi para a assistência vivo”.

Não se sabe o que passou pela cabeça de Geraldo Pereira ao provocar João Francisco dos Santos, conhecido por todos como Madame Satã. O prejuízo que um copo de chope causou para a Música Popular Brasileira é imensurável. Ninguém duvide de que o compositor de clássicos do samba, como Escurinha e Falsa Baiana, vacilou. Todos conheciam a fama do discípulo de Sete Coroas, homossexual que não levava desaforo pra casa, mas que conquistou admiradores e respeito ao defender vítimas da opressão da polícia e da ação de assaltantes. Para muitos, foi um herói do baixo meretrício. Tratava o mal pela raiz, regava os próprios pés. Nas aproximadas três mil confusões registradas em seu nome, constam três assassinatos, os quais reconheceu o envolvimento, sempre com a admirável capacidade de negar a culpa. Em O Pasquim, lê-se que a morte de um guarda-civil foi causada por um disparo casual de seu revólver. “A bala fez o buraco, quem matou foi Deus”, explicou o protetor dos desvalidos, que, por essas e outras, passou vinte e seis anos no Presídio de Ilha Grande. Noel Rosa também conheceu Madame Satã, conforme registrou no samba “Mulato Bamba”, lançado por Mário Reis, em 1931.

O mulato é de fato
E sabe fazer frente a qualquer valente
Mas não quer saber de fita
Nem com mulher bonita”

Conforme fontes próximas, uma única pessoa foi capaz de encarar Madame Satã, mano a mano, e vencer o duelo. Seu nome é Guynemer Brasil, um malandro de linhagem pouco conhecida. Pelo que sei, o suposto valente descende dos povos celtas, famosos pela fúria e pelas conquistas mundo afora. Isso explicaria, em parte, a origem da violência com a qual teria desferido seguidos golpes de capoeira em Satã, antes de desaparecer por detrás dos Arcos da Lapa. Forças ocultas sugerem que um rosto, desenhado à navalha e deformado por socos, em uma das paredes do já desativado presídio de Ilha Grande, corresponde ao de Guynemer. Envolto em pesquisas sobre este personagem, descobri que seu pai, Néri Castorino, fugiu a galope de São Paulo com Maria Augusta nas costas, uma adolescente de treze anos de idade. Eram fins de 1916, e a fuga se fez necessária depois que Néri resgatou a sua amada ao pé do altar, evitando que ela se casasse com o seu rival. Encomendados pelo noivo traído, batalhões de jagunços foram enviados aos quatro cantos do Estado, mas a rota dos apaixonados havia sido traçada com esmero. Uma semana depois, alguém deve ter visto um estranho casal e um cavalo ofegante procurando hospedagem na Rua do Lavradio. Maria Augusta ainda vestia véu e grinalda quando conheceu as entranhas do Rio de Janeiro. Um ano depois, nasceu Guynemer.

Em minha única fonte de pesquisa, momentos após o confronto com Madame Satã, Guynemer tirou o bigode e inverteu a direção do penteado. Malandro que era, não procurava briga, também nunca se esquivou quando necessária. O motivo do duelo com Satã teria sido uma proposta indecorosa. Em defesa da honra, o rapaz franzino reagiu de imediato. Consta, nos autos do meu estudo, que por conseqüência da repercussão da briga, ainda que sob disfarce, Guynemer ficou um tempo sem freqüentar a Lapa. Depois, escondia o lenço no pescoço por trás de seu jaleco de médico. Uma coisa é certa: seguindo os passos do pai, ele também arrebatou sua amada em um golpe de malandragem. Em uma noite sem luar, disputou com outro médico de plantão uma rápida partida de xadrez. “Ao vencedor, o direito de prestar atendimento àquela dama”, combinaram. Tudo indica que Guynemer sabia que o seu destino estava escrito no tabuleiro. Em um momento de distração do oponente, arremessou pela janela um bispo e dois peões que ameaçavam a sua rainha. Sem a prova do crime por perto, não precisou dar maiores explicações, e venceu a partida. E foi assim que ele conheceu Anileda, minha avó materna. Dia desses, resolvi tirar a limpo essa história.

- Vovô, você bateu ou não bateu em Madame Satã?
- Não lembro, não lembro.
- Mas você freqüentou a Lapa na década de trinta?
- A partir dos doze anos de idade e até conhecer sua avó. Já te falei que eu me casei com ela no dia da final da Copa de 50?
- Já. Mil vezes. Mas o que eu quero saber é se você bateu em Madame Satã.
- Pedrinho, não acredite nas coisas que seu pai diz. Esse meu genro tem cada uma.
- Poxa, vovô, que decepção. Perdi uma história boa pra contar.
- Eu não bati em Satã. Pelo que eu me lembre.
- Sei... Então me fale sobre o Noel.
- Leonel?
- Não vovô. O Noel Rosa. O Noel Rosa, repeti gritando.
- Ah. Eu tinha quatorze anos quando comecei a freqüentar Vila Isabel e conheci Noel.
- Em 1931?
- É. Todo mundo gostava do Noel. Sempre sentado no “Conto de Réis”. Algumas vezes ele me convidou para beber e ouvir algumas de suas músicas.
- Que inveja, vovô. Que inveja! E Ceci, o grande amor de Noel, você a conheceu?
- Pessoalmente, não. Mas a vi diversas vezes caminhando pela Lapa. Infelizmente, eu era muito novo para assistir às apresentações da Dama do Cabaré. O baixo meretrício tinha suas regras.
- E tem até hoje. Eu garanto.
- Já te contei o que aconteceu no dia em que conheci a sua avó?
- Já, vovô. Você teve que apertar a cintura dela no exame. Aí ela te deu uma bofetada.
- Foi amor ao primeiro tapa. Descobri onde ela morava e apareci com flores, uma semana depois.
- Só mesmo uma mulher pra consertar um malandro, não é vovô? Ainda bem que Madame Satã não te acertou um murro. Já pensou se você se apaixonasse por ela? Ou ele? Eu não estaria vivo.
- Madame Satã não era nada perto da sua avó. Essa sim era brava.
- Vovô, você viu o filme que saiu sobre a vida de Noel?
- Não.
- É a Camila Pitanga que faz o papel de Ceci.
- O que é que tem a manga com Pequi?
- Não, vovô. Eu disse que a Camila Pitanga faz o papel de Ceci no filme, gritei novamente.
- Gostosa, né?
- Muito. Mas você se comporta. Se não vovó puxa teu pé na cama.
- Ai.

Apesar de pouco esclarecedora, a conversa me fez recordar do dia em que conheci Camila Pitanga. Foi no carnaval carioca de 2004, próximo ao Forte de Copacabana, na concentração do bloco Flor do Sereno. Lembro que naquele início de ano eu decidi estudar astronomia, decisão que não durou muito. Sempre me interessei pelo movimento dos astros. Quando criança, por vezes sonhei que rompia a estratosfera pilotando um pequeno balão movido a hélio. O fato é que os mistérios da ciência me encantavam como nunca e, de alguma forma, se embaralhavam em minha imaginação. Naquele carnaval sai fantasiado de Júlio Verne, antigo escritor francês conhecido por suas obras de ficção científica. Quando na adolescência, li três de seus livros: A volta ao mundo em oitenta dias, Viagem ao centro da terra e Vinte mil léguas submarinas.

Foi divertido montar a fantasia de Júlio Verne. Em uma loja de brinquedos, no Largo do Machado, comprei uma bola de plástico, de cerca de um metro de diâmetro. Em uma feira de antiquários, na Rua do Lavradio, comprei um balaio, uma máscara de mergulho e um capacete de aviador. Consegui com um camelô, a preço de estoque, alguns arames e um suspensório, itens necessários à idéia. Com os fios de aço amarrados no capacete, fixei a bola acima da cabeça. Furei o balaio para o encaixe das pernas e amarrei os suspensórios para o ajuste do corpo, a exemplo dos palhaços de calças largas. Bastou-me colocar a máscara e o capacete para virar o piloto do meu balão, como nos sonhos, como em muitas viagens dos personagens de Júlio Verne.

Brincar o carnaval é coisa séria. Não adianta sair de padre sem rezar a missa. Sair de bailarina sem andar na ponta dos pés. Sair de cozinheiro sem ensinar receitas. Sair de Júlio Verne sem histórias pra contar. Minha fantasia se completou com uma barba postiça e um cabo de vassoura fixado no balaio, a alavanca de direção, uma invenção própria e necessária aos passeios terrestres. Quando vi Camila Pitanga, manobrei o meu balão ao seu encontro, com a coragem de nove latas de cerveja.

- Bip, bip. E aí doutora, quer uma carona pro céu?
- Não, obrigada. Tenho medo de altura.
- Pode confiar. Eu sou o Júlio Verne, escritor francês.

Vestida de enfermeira, Camila Pitanga começou a rir. Entrou na brincadeira.

- Pensei que fosse um inventor maluco. Tipo o pai do Noel.
- Noel Rosa?
- Isso mesmo. Vou participar de um filme sobre a vida de Noel. Pelo roteiro, o pai dele foi um inventor. As gravações não começaram por falta de recursos, mas o filme vai sair. O que faz por aqui, seu Verme?
- É Verne. Verne! Passei alguns dias no centro da terra. Aí veio a tal da Lei Seca. Calor sem cerveja não dá, né? Então, comprei um submarino e viajei vinte mil léguas até chegar ao Japão. Tive dificuldades com o idioma e resolvi partir. Então, comprei um balão, decidido a conhecer o Brasil. Quando avistei os canhões do Forte de Copacabana, me assustei. Fiz uma manobra arriscada, esbarrei no bondinho do Pão de Açúcar e me esborrachei no chão. Tem um band-aid aí? Ai. Ai.
- Olha só, esqueci minha mala de curativos. O papo tá bom, mas preciso encontrar o meu marido.

Olhando para o céu que se misturava com o Atlântico, propus:

- Se a gente for pra lá, prometo que te deixo neste mesmo ponto daqui a oitenta dias.
- Engraçadinho. Sem chances.
- Bom, pelo menos, um autógrafo?
- Claro que sim. Aonde?

Agachei e apontei para o balão. Em posição privilegiada, admirei aquelas belas coxas. Camila Pitanga autografou e desapareceu para todo o sempre. Segui o bloco pela beira mar. Pouco depois, através do meu reflexo no vidro de um carro engavetado entre os foliões, pude ler o autógrafo concedido: agnatip alimac, lavanrac od emrev oa.

- Caralho! Você pode me dizer que porra é essa? Perguntei para um que passava fantasiado de palhaço.
- Qual é o problema, Pequeno Príncipe?
- Camarada Bozo, eu sou o Júlio Verme, compreende? Deixa pra lá. Você, que já rodou o mundo fazendo gracinhas, pode traduzir o que está escrito no balão?
- Ao verme do carnaval, Camila Pitanga.
- Não pode ser, não foi isso que li no vidro do carro.
- Seu verme...
- É Verne! É Verne!
- Seu Verne, pelo reflexo a gente tem que ler de trás pra frente.
- Que nem fazia o Leonardo da Vinci?
- Sei lá, que nem faz todo mundo. Não é por nada não, mas você foi sacaneado.
- Filha da puta!

Às vezes me pego pensando em alguns fatos que me ligam ao Poeta da Vila, sendo um deles o meu avô Guynemer. Como tudo na vida tem o seu lado ridículo, o meu primeiro caderno de estudante de arquitetura, por exemplo, contém versos escritos no ano de 1995, quando compor mais músicas do que Noel se tornou um desafio em minha vida. Obcecado, acreditava que também não passaria dos vinte e sete anos de idade, e corria contra o tempo. Hoje, quatro anos após o dia em que não morri, me contento com um disco gravado e alguns sambas na gaveta. Minhas andanças pelo baixo meretrício de Brasília também trazem coincidências. Se Camila Pitanga interpretou Ceci dois anos após me humilhar no carnaval de 2004, Cammila da Silva cumpriu o papel de primeira mulher em minha vida, dez anos antes. Conheci Catchúcia, nome de guerra de Cammila, numa barraca de cachorro quente no Setor de Diversões Sul, na porta de um cabaré de quinta categoria, onde costumava parar com alguns amigos após as festas. À época, menor de idade e sem passaporte para a luz vermelha, não comia nada além de pão com salsicha, restando-me apenas a amizade com algumas profissionais. Numa noite de lua cheia, tomei uma decisão.

- Chega, rapaziada. Não quero passar a vida comendo cachorro-quente. Vamos levar umas mulheres lá pra casa onde eu morava, e que está vazia. Vou falar com Catchúcia para ver se ela faz um desconto e chama umas amigas. É hoje que arranco a pele!

Horas depois, encontrava-me imundo e ofegante, no mesmo quarto no qual dividi a infância com o meu irmão. No mesmo chão onde recentemente encontrei o meu primeiro caderno de arquitetura, molhado, após a chuva invadir alguns aposentos da casa a qual voltei a residir há cerca de um ano. Catchúcia se espantou com os meus sucessivos ataques de asma, ocasionados pela combinação da atividade física com a poeira da casa abandonada. É impossível esquecer daquela noite. As marcas dos tacos do piso de madeira ficaram dias nas minhas costas. Lembro que Catchúcia começou com o que chamou de “o balé do pecado original”, uma maravilha. Eu tremia como nunca, mordia os lábios e babava no cigarro. Naquele momento, reparei que ela não possuía o mindinho do pé esquerdo, motivo pelo o qual foi registrada no cartório com uma de suas consoantes dobradas. Cammila da Silva reclamou da dura vida que levava no meretrício, e me fascinou com a sua inteligência. Contei-lhe sobre a minha decisão de prestar vestibular para arquitetura. Ela confessou sua admiração por Oscar Niemeyer, insinuando ter sido o seu corpo fonte de inspiração do arquiteto. Abraçados, também conversamos sobre o capitalismo e sobre a necessidade de revolucionarmos o mundo, para que um dia ela não mais precisasse se prostituir. “Penso, logo existo, é piada. Me alimento, e assim existo pra pensar, eis a realidade”, ouvi, emocionado. Com lágrimas nos olhos, despedimo-nos sem beijos, ainda na varanda de casa.

- Cuida bem do professor. E se passar no vestibular, não deixe a lapiseira cair.
- Deixa de sacanagem, Catchúcia. Nunca tinha visto o treco ao vivo. Me assustei, e nada mais natural. O importante é que no final deu tudo certo, não é mesmo?
- Pedrinho, o que é isso?
- Isso o quê? Ah... São nêsperas.
- É de comer?
- É sim. É um tipo de ameixa.
- Olha, tem um casal de caramujos subindo no pé de nêsperas.
- Como andam devagar...
- Também quero uma.

Pelo cobogó catei uma nêspera, ofereci. Ela comeu o que tinha pra comer, engasgou com o caroço, mas sorriu agradecida. Em seguida, partiu com as suas amigas, com os meus amigos, e com a minha mesada acumulada. Rastros de luz anunciaram o amanhecer. Antes de me ver coberto pela sombra dos dias, jurei nunca mais freqüentar o meretrício, nunca mais me servir da miséria humana. Em 1935, Noel jurou não mais amar Ceci pela décima vez.

Consta, em meu enrugado caderno de arquitetura, duas homenagens à Catchúcia: um verso e um croqui do meu primeiro projeto técnico, uma caixa de fósforos. Virei noites para executar a tarefa atribuída pelo professor Cláudio, o mesmo que me concedeu o primeiro emprego, anos depois. Ao propor a tarefa, ele argumentou que, antes de projetarmos obras de porte, teríamos que aprender a resolver pequenos problemas. Ninguém discordou. Na data combinada, apresentei o trabalho.

Relatei no Memorial Descritivo parte das inspirações do projeto. As fachadas de Catchúcia, na versão caixa de fósforos, foram desenhadas com perfeição. Para demonstração e eventuais dúvidas, levei uma maquete, ou uma pequena boneca pelada, modelo bailarina, cujas mãos descreviam um arco acima da cabeça, e o corpo se apoiava na ponta dos pés. “Trata-se de uma linha exclusiva para cabarés, o que não a impede de ser comercializada em todo o baixo meretrício, motéis ou casas do gênero”, expliquei à turma de calouros. A invenção era simples, mas genial. A cabeça dela podia ser arrancada para a reposição dos palitos, tornando a chama imortal. Já os palitos, caiam pelo mindinho ausente, após uma torcida no mamilo esquerdo. Esta foi a solução encontrada para a correção do defeito congênito de minha inspiração, pois a cabeça de cada palito a cair simulava um dedo com esmalte vermelho. As lixas para o risco foram detalhadas no corte longitudinal, visto que se encontravam nos dois orifícios entre as pernas, permitindo ao usuário livre escolha. “Nada melhor do que um cigarrinho após uma noite de amor”, encerrei de modo romântico a apresentação, antes da demonstração prática. Todos me olhavam embasbacados.

- E agora, com vocês: Catchúcia, a chama eterna.

Com um cigarro no canto da boca, torci o projetado mamilo esquerdo. Sob olhares de reprovação, introduzi o palito de fósforos em Catchúcia, sorrindo para quebrar o clima de tensão, especialmente a do professor. Apertei as nádegas de borracha e puxei o palito, riscando-o conforme os desenhos técnicos. A partir daí, a coisa esquentou. A chama se fez além do imaginado e atingiu o cabelo da boneca. “Socorro!”, gritei assustado, enquanto tentava conter o fogo que se espalhava. Não demorou, sua cabeça começou a derreter, e seus olhinhos viraram. Sussurros foram simulados na sala, desviando a minha atenção e a do professor, que deixou a lapiseira cair. Sequer me dei conta de que apertava o cigarro apagado contra os dentes, e franzia a testa, ao tempo em que balançava a bailarina numa tentativa de salvar a minha pele. Sem opção, arremessei-a pra longe. Como um balão rompendo a estratosfera, ela voou alto, e caiu ao pé da única evangélica da turma. “Santo Deus, livrai-nos de todo o mal”, ouvi o sermão, que, paradoxalmente, mais parecia ser a bronca do Satã. “Cala a boca, madame”, respondi alto. Alguns risos ecoaram, mas não me dei por vencido e pedi respeito. Fora de si, a beata deu um pontapé na boneca, que rebateu no teto e lançou labaredas sobre o professor. Este levantou indignado, desferindo esporros para todos os lados. Enfim, Catchúcia pôde repousar o seu corpo em chamas, como na noite em que a conheci em carne e osso, e sentimentos. “Não era pra ser assim”, jurei, com migalhas de fumo no canto da boca, enquanto refletia sobre os possíveis erros de cálculo. Decepcionado, guardei na sacola o que restou do corpo enfumaçado, para posterior autópsia. Puto da vida, o professor Cláudio me deu nota zero, e exigiu que eu refizesse o trabalho. Pela honra de Catchúcia, neguei de imediato. Sequer li o trecho do verso separado para o grand finale.

Queixava-se. Ai, queixava-se
Minha meretriz ao cafetão
Vendia o seu corpo por qualquer mirré
Enquanto eu lhe aguardava no portão
Vestindo o nosso amor com um bom libré

Caramunhava pela manhã meu violão
Feito criança que reluta um cafuné
Trocando, em notas, minha agonia por refrão
Como jamais faria por outra qualquer”

Ano passado, descobri que Catchúcia não mudou de profissão. Se não bastasse, galgou posições na hierarquia do meretrício, e agora trabalha em um cabaré de luxo de Brasília. A notícia correu em uma reunião do Comitê Heterossexual dos Homens Sensíveis, o CH2S. O ponto de pauta foi a despedida de solteiro de um dos membros vitalícios da organização, que tem como objetivo lutar pelo direito do homem de exercer a sua sensibilidade, livre de rótulos e/ou piadas pejorativas. Dentre outras atribuições, o CH2S presta apoio moral irrestrito às vitimas de qualquer interpretação não dialética do ato de brochar ou ejacular precocemente. Ressalta-se que não questionamos os direitos das mulheres, conquistados com muita luta, apesar de usarmos o verbo contra elas em nossas sessões de terapia coletiva. Estas ocorrem com freqüência no Bar e Restaurante Beirute, anexo sul. Somos fiéis partidários da emancipação feminina, com a justa equiparação dos direitos e deveres das partes envolvidas na transmissão do gene humano. Por conseguinte, o CH2S repudia a radicalização de setores do movimento feminino, com sua absurda Teoria do Homem Máquina, pela a qual um homem não pode cometer falhas sob o risco de ser trocado por outro com tecnologia mais avançada. “O destino dos homens descartáveis é apodrecer no lixo. Uni-vos para reciclar nossas vidas, e que eles sirvam de alimento para os vermes”, li recentemente no manifesto da organização Ovários Unidos, OU.

Deste ponto de vista, classificar a ação do CH2S de contra insurgência é legítimo, e elas que tomem cuidado. Desde a proclamação da Teoria do Homem Máquina, filiaram-se aos nossos quadros inúmeros cornos, promíscuos, vítimas de maus tratos da mulher, alcoólatras, brochas, poetas, suicidas em potencial, profetas, viciados em rapé, entre outros homens que sofrem com as ranhuras e a insensibilidade do gênero oposto, na atual etapa de desenvolvimento das relações humanas. Como não poderia deixar de ser, nossas posições ideológicas também confrontam as convicções machistas enraizadas em nossa sociedade, e esse é o nosso diferencial quando comparados a outras organizações congêneres. Alguns artigos de nosso estatuto, em seu capítulo único, Dos direitos e Deveres Universais dos Homens Sensíveis, são esclarecedores.

Art. 1 - Todo homem tem o direito de ser sensível.

Art. 2 - Todo homem sensível tem o direito de exercer a sua sensibilidade sem ser taxado de bicha, pederasta, veado, boiola, rapariga ou termos afins.

Parágrafo único: Compreende-se por sensibilidade versos, serestas, trabalhos acadêmicos, prantos, futebol, baixo desempenho, cantadas, conversas de bar, sambas, buquê de flores, piadas sem graça, etc.

Art. 7 - Todo homem tem o direito de brochar.

Parágrafo único: Com base no princípio de direitos e deveres iguais, a mulher também é responsável pelo acontecimento.

Art. 15 - Todo homem tem o direito de virar um idiota quando apaixonado.

Art. 21 - Todo homem tem o direito à ejaculação precoce.

Art. 39 - Todo homem tem o direito de recorrer à própria natureza quando acometido pelos eventos enunciados nos artigos 7 e 21 do presente Estatuto.

§ 1o Compreende-se como a própria natureza os pés, a birra, a boca, o nariz, o ronco, a barba por fazer, as mãos, as orelhas, as cócegas etc.

§ 2o (Emenda emergencial consolidada no último Congresso): É vedada a utilização de utensílios fabricados pelo próprio homem, garantindo o princípio da concorrência justa, e evitando o fortalecimento da Teoria do Homem Máquina.

Art. 54 - Todo homem tem o direito de tirar um cochilo após o ato. Nestas ocasiões, deve ser respeitado um dos direitos universais das mulheres, o de conversar com as paredes.

Art. 67 - Com base no princípio do livre arbítrio, todo homem sensível demais tem o direito de não gostar de mulher e enroscar o bigode com outro homem.

Art. 68 - É vedada a filiação em nossa organização de homens que se enquadram na definição “sensível demais”, conforme Art. 67 do presente Estatuto, e com base no livre arbítrio.

Seguindo a minha jura de nunca mais freqüentar o meretrício, recusei o convite para participar da despedida de solteiro de Aderbal, identificado aqui por seu nome fictício, conforme orientações consolidadas no Artigo 93. Como homem sensível que é, Aderbal avisou a noiva e convidou o sogro para participar e financiar o evento. A minha presença se desfez no Beirute, para a decepção de muitos que me têm como referência dentro da organização. Coincidência ou não, pensei em Catchúcia naquele momento, sem imaginar que seria ela a atração principal da noite. Consta, na ata da 983o reunião do CH2S, o relato de Apollo, também identificado por seu nome fictício.

“Puta que o pariu, foi sinistro. O lugar era chique pra caralho, cheio de onda, cheio de regras. Tinha deputado, senador, gringo, juiz, uma verdadeira zona da alta patente. O sogro do Aderbal bancou uísque pra galera. Não demorou, estávamos todos alucinados. De repente as luzes principais se apagaram. Algumas putas passaram acendendo as velas nas mesas, deixando o ambiente sombrio, mas provocador. Do nada, uma luz neon se acendeu sobre um DJ que até então ninguém tinha visto. Um bate estaca começou a rolar e a parada virou uma boate com aquelas luzes que piscam e deformam o movimento das pessoas. A galera se animou. Tinha até nego rodando o paletó com a gravata na testa. De repente, um buraco se abriu no palco. Por um elevador hidráulico, subiu a atração principal da noite. Cumpadi, só vendo. Ela foi anunciada como a dama do cabaré. Era meio esquisita, mas gostosa pra caralho. Do nada, as luzes se acalmaram e começou a rolar a Nona Sinfonia de Beethoven. Foi quando ela começou a dançar um tal de ‘balé do pecado original’, conforme o DJ anunciou, uma maravilha. Ficou todo mundo babando com aquilo, mordendo os lábios. É impressionante como essa turma da alta patente gosta de putaria. Eu fiquei de cara com a quantidade de dinheiro arremessado no palco. Provavelmente tinha imposto nosso no meio. Aquilo durou alguns minutos até que o DJ parou a música e anunciou o nome de Aderbal, e o propósito dele estar ali. A mulher olhou para o Aderbal e o chamou para o palco, para participar do grand finale. Como alguns que estão aqui já sabem, pois viram, ele pipocou diante da presença do sogrão. Aí eu resolvi ver qual é. E corri em direção ao palco. Do nada, o maluco do DJ começou a tocar aquela música do Noel Rosa, acho que o nome é Último Desejo. Meu irmão, ninguém entendeu porra nenhuma. Acho que era uma espécie de prenúncio do fim, sei lá. Só sei que já estava no palco e a mulher se esfregava em mim, e se despia vagarosamente, arremessando as roupas num balaio. Ela tinha uma fruta, talvez uma ameixa, tatuada na virilha. Aí ela tirou a minha camisa e depois me derrubou no chão. Abriu a minha calça e enfiou a mão. Senti um tranco na bunda e uma ardência nos bagos. Foi quando percebi que ela, sem tirar as minhas calças, tinha arrancado a minha cueca. Caralho, nunca tinha visto coisa do tipo, foi cabuloso. Até o pé ela esfregou na minha cara. Aliás, nesse momento reparei que ela não tinha o mindinho de um dos pés, muito esquisito aquilo. Quando a música parou, fomos aplaudidos de pé. Eu tava todo descabelado e com o piso de madeira do palco desenhado nas costas, tamanha a pressão que ela exerceu sobre mim. Que mulher! Que mulher! Antes de descer do palco, peguei o sutiã dela no balaio e o ergui como um troféu. ‘Sutiã. Meu troféu!’, gritei, sob mais aplausos. Atendendo a pedidos, arremessei-o para o público. Aquela peça de vestuário rolou de nariz em nariz. Deputados, senadores, gringos, muitos a cheiraram, alguns a beijaram e até a esfregaram na própria cara. Quando chegou na nareba do sogro do Aderbal, gritaram que aquilo não era um sutiã, mas a minha cueca. Isso mesmo, a minha cueca tinha virado uma tira de pano. Vocês não vão acreditar, eu catei no balaio a minha cueca pensando que era o sutiã, e a arremessei sem perceber o erro. ‘Eca, uma galera cheirou a cueca’, gritou o DJ no microfone. Do nada, o cara colocou a Marcha Fúnebre pra tocar. Esse cara era demais. O sogro do Aderbal ficou completamente transtornado, pegou uma vela e tacou fogo no pano. Logo, uma fila monstruosa se formou no banheiro. O pior é que a cueca tava toda melada, peidada, sei lá. Essas coisas da vida. E foi isso”.

A vida é mesmo um tabuleiro de xadrez. Ceci foi o grande amor de Noel, que conhecia Madame Satã, que apanhou, ou não, do meu avô, que nunca viu Ceci dançar. Duas gerações depois, eu a vi dançar através de Camila Pitanga, sua intérprete no cinema. Se Camila Pitanga me judiou no carnaval de 2004, deduz-se que Ceci também judiou de mim, num misto de ficção científica e realidade. Considerando já estar provado que Catchúcia está para mim como Ceci está para Noel, bastaria um implante de um mindinho no pé esquerdo de Catchúcia para concluirmos que ela e Ceci são a mesma pessoa. O enxerto necessário já foi feito em meu primeiro projeto de arquitetura e, pela lógica, causou a anulação da consoante dobrada no verdadeiro nome de Catchúcia. A equação que comprova a teoria é simples, mas genial.

Camila = Camila = Ceci

A partir deste raciocínio, não restam dúvidas de que a principal coincidência entre mim e Noel Rosa é o fato de termos feito sambas inspirados em Ceci, minha chama imortal, nossa Dama do Cabaré. Agora que resolvi viver mais cem anos, quem sabe consigo ultrapassar a quantidade de composições do Poeta da Vila, ou Queixinho para os íntimos. Quem sabe com um golpe de malandragem. Quem sabe...

Às vezes, fico a imaginar como seriam as notícias do dia seguinte à minha morte:

Correio Braziliense, 13 de agosto de 2108.

“Compositor gagá martela o próprio queixo e se enforca com uma fita amarela.

O corpo foi encontrado dependurado numa nespereira, localizada na frente de sua casa, em avançado estado de putrefação devido à ação de um batalhão de caramujos, que se aproveitou da lambuja antes mesmo dos vermes. Sabe-se que o velhinho agiu quieto, sequer deixou cartas. A polícia suspeita de motivação passional. 'Quando descemos o cadáver da árvore, identificamos o nome Catchúcia gravado na imensa fita amarela. Também estamos investigando o que significa CH2S, sigla tatuada no braço do defunto. O que mais nos intriga é o largo sorriso com o qual o ancião foi encontrado, além do capacete de aviador que ele usava. Pela análise do carbono, a indumentária data do século XX. Acreditamos que seja uma relíquia da Segunda Guerra Mundial. Os peritos estão trabalhando no caso e o laudo deve sair em trinta dias. O corpo já foi liberado para a missa de corpo presente, mas ninguém apareceu pra buscá-lo', declarou de modo oportuno o delegado de plantão”.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Capítulo II - Allez France! Allez France! Allez France!

Estádio Guadalajara, México, 21 de Junho de 1986. A Seleção Brasileira foi eliminada da Copa do Mundo e o sonho do tetracampeonato, mais uma vez, adiado. As imagens de Araquém, o Show Men, personagem que satirizava os adversários derrotados, não foram ao ar. Lembro que ele apareceu, pela primeira vez, antes da abertura dos jogos, num capítulo especial dedicado aos anfitriões. Num bar, arrancou o bigode postiço de um garçom, furtou-lhe uma tequila e sambou abraçado por várias mulheres. Durante os jogos do Brasil, Araquém se tornou uma atração à parte, aguardada ansiosamente após cada vitória. As crianças o adoravam.

Naquele solstício de inverno, o Brasil perdeu para a França. Hoje, imagino como seria o episódio que ninguém viu. Vejo o nosso herói passando pelo Arco do Triunfo, traje militar azul e branco, chapéu panamá e espadachim na cintura. Montado num elegante cavalo amarelo de madeixas verdes, criteriosamente penteadas, faz uma parada no Café Bastilha. Uma espetada na nádega do tratador de animais, a primeira ordem: “Napoleão não come capim, nem bebe água. Pra ele, o melhor vinho tinto da casa e escargots ao ponto. E não deixe de lustrar as ferraduras”. A cena segue com um close no eqüino. Ele vira o pescoço, encara o telespectador e prepara o deboche. Zoom: “ihhhhhihihihi”. Novamente sob o foco da câmera, Araquém emenda um pontapé na porta do estabelecimento, derruba trinta branquelos, entra, e põe outros cinqüenta pra correr. Sob a admiração de divas francesas, pede uma cerveja, saca um pandeiro e puxa o bordão.

“Aha, uhu, a Bastilha é nossa.
Aha, uhu, a Bastilha é nossa”

O que seria o prenúncio do funk carioca não aconteceu além da minha imaginação. Na realidade, Zico perdeu o pênalti que traria a vitória no tempo regulamentar. Prorrogação, novo empate, mais pênaltis. Os detalhes da derrota são cruéis. Sócrates correu, parou, olhou. Fingiu que ia correr, correu de fato e parou novamente. Levantou o pé, pensou e chutou. “Defendeu! Que paradinha infeliz! Esse até o Rafael faria”, gritei. “Será?”, indagou Daniel, meu irmão. Pouco depois, Júlio César beijou a bola que, sem compreender o gesto, arrancou tinta do travessão e parou a longos metros de distância da meta. Fernández converteu para os franceses e partiu pro abraço. E por aqui não houve criança na rua, não houve fogos no céu, não houve cantoria. O vento que bailava pelo cobogó tinha o aroma de tristeza. Acredito que nesse dia se deu o início de uma sentença que perdura até hoje, contra a qual não há santo que advogue. Cinco copas do mundo depois, o Brasil é pentacampeão, mas continua freguês da França. E Araquém, que dias antes deu um olé num espanhol fantasiado de touro, perdeu o emprego e nunca mais apareceu.

Foram alguns dias de luto até a vida voltar ao normal. A turma, que costumava brincar todas as tardes, não se reuniu por uns tempos. E olha que eram muitas crianças! Só em casa, éramos quatro. “Daniel, Mariana, Pedro, Andréa, seu pai chegou”, como anunciava a tia Zefa na saída da escola. Na casa ao lado, os três filhos de Maria Helena: os gêmeos, Daniel e André, e o caçula Rafael, o canhoto. Fábio, Igor e Renata formavam outro trio. Futuros herdeiros de João Luiz, a primeira e única pessoa que vi criar um cabrito em casa, o Zé Mané. Tempos depois descobri que o mesmo tinha sido o prato principal em um almoço para o qual me convidei. Fiquei pasmo! Duas casas ao lado, mais um trio, os irmãos Márdem, Andréia e Adriene, a musa de muitos e o primeiro beijo de alguns. É impossível não lembrar do Marcelo, o suíno, devido à indiscutível habilidade de cuspir numa altura impressionante e, segundos depois, abocanhar o mesmo cuspe. E da Letícia, a oriental. Sob o sol ou sob a chuva, sempre aparecia o Vander, filho do português da padaria, a mesma na qual desenvolvi a técnica de roubar três picolés ao mesmo tempo. E os irmãos Hamílton e Wagner, filhos do dono da banca de revistas de sacanagem, onde inúmeras tardes eu passei.

- Mãe, vou estudar matemática na casa do Hamilton!

Bons tempos. E às vezes me pego distante ao ver essa grama vazia de gritos, impregnada de latidos. Onde estão as crianças? O pique-esconde? O pique-pega? O futebol? As corridas de tampinhas? Os concursos de desenhos? Nossos pais reunidos na varanda? Onde? Onde? Que salafrário é esse que avançou a grade além do permitido? Por alguns metros de jardim privado, estrangulou o passeio público. E essa cerca elétrica que só faz matar passarinhos? Ora, em 1986 também nos preocupávamos com a segurança, assaltos à mão armada aconteceram, bicicletas foram furtadas. Lembro que aos dez anos fui agarrado no pescoço por um pivete. Ele me levou um chinelo novinho. O outro, eu consegui recuperar, antes de me refugiar na padaria.

- Ô pivete, saia já de perto dos picolés.
- Tio, acabei de ser roubado.
- Bem feito. Pra aprender a não roubar dos outros.

Se ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão, e o preço do pão também era um assalto, naquele dia aprendi na prática um pouco mais sobre a miséria humana, embora não compreendesse suas causas. Nem por isso passei a andar com canivete, ou mesmo solicitei ao meu pai que providenciasse um poço com jacarés no jardim. O que faz um vizinho colocar uma cerca elétrica, ou avançar a grade em área publica, é a certeza de que por trás de cada irregularidade existe uma base eleitoral. Outro oportunista há de defendê-lo a troco de voto. Aos poucos, o homem deixa de conjugar o verbo além da primeira pessoa do singular. Se não houvesse exceções, a vida seria insuportável.

“A hora é essa!
A hora é essa!
Antes que a gente cresça e se esqueça
De que um dia também foi criança

Soltar a pipa
Bola de gude
Viver a vida
Que o tempo é rude”

Certas coisas me fazem recordar o fim do luto da eliminação do Brasil. Sempre que escuto estes versos, gravados recentemente pelo grupo Batucada de Bamba, lembro-me do Rafael me chamando na porta de casa. A Argentina já era bicampeã mundial.

- Pedrinho, Pedrinho.
- Fala, Rafa.
- Vamos jogar bola?
- Mas você não tá de castigo porque perdeu a chave?
- Tô e não tô. O Maurício viajou e a minha mãe disse que eu posso brincar. Mas só em frente de casa.
- A Maria Helena é massa! Olha só, vou terminar o dever e às quatro horas a gente joga. Você avisa os seus irmãos, o Fábio, o Igor e o Suíno. Eu dou o toque no meu, no Vander, no Hamílton, e ainda passo no parquinho pra ver se encontro o pessoal da rua de cima.
- Tá certo.
- Tá com a bola?
- Tô.
- Você viu o Maradona na Copa? Que craque!
- A canhota dele só não é melhor que a minha.
- O que é isso, Rafael? Você nunca fez um gol na vida.
- Isso é mentira. É mentira!

Nada como uma partida de futebol para lavar a alma. Às quatro horas estávamos todos lá. Com os agregados, entre eles os irmãos Dourado, André e Rodrigo, éramos doze viúvos sedentos de alento. Seis para cada lado, cinco na linha e um no gol. Perfeito para as dimensões do campo, definido nas laterais pela calçada de pedestres e, nos fundos, pelas traves, construídas meses antes em um mutirão. O polígono se fechava com duas ruas de acesso a veículos, a doze metros de cada trave. Aos que aguardavam a próxima, sempre cabia a função de gandula, para evitar a perda de bolas por atropelamento.

Determinado pela conjuntura, o sonho de muitos que se aqueciam era ser jogador da seleção brasileira e, num futuro não muito distante, vingar a derrota contra os franceses, de preferência numa final disputada na casa deles. O cenário, por sua vez, contemplava a presença de alguns pais e muitas meninas. Sempre que elas apareciam, os atletas ficavam mais vistosos: postura ereta, camisa pra dentro do calção, peito estufado. As coxas definidas eram motivo de fuxico, dava pra perceber. As moças também exerciam sobre nós efeitos semelhantes ao de um doping tradicional. O fôlego e a valentia aumentavam. E ninguém queria passar vergonha na frente delas.

O jogo da redenção começou com um imprevisto. Aos dez segundos de partida, a primeira confusão. Fábio rolou a bola pra trás. Do meio de campo, Vander emendou uma bicuda em direção ao gol. A bola fez uma curva esquisita e acertou em cheio o nariz do meu irmão, antes de sair pela lateral e parar na sombra da nespereira. Ainda zonzo, Daniel, que tinha um temperamento acentuado, levantou e desferiu um cascudo no Hamílton que não teve nada a ver com a história.

- Ai, ai, ai. Eu sou do seu time, porra!
- Foi mal! Confundi.
- Foi mal porra nenhuma. Vem! Vem!

Eu não sei o que passou pela cabeça do Daniel além da bola, mas, por sorte, os pais intervieram. Para efeito de apaziguamento, ficou decidido que o jogo recomeçaria com o meu irmão no gol, até ele resfriar as idéias. O Rafael, que havia perdido no par ou ímpar americano, passou para a linha. Recordo do diálogo no momento da troca:

- Pode deixar, vizinho, eu vou acabar com eles.
- Meu nariz tá sangrando? Será que a Adriene viu?
- Você escutou o que eu disse?
- Escutei, Rafa.
- Rafa, não. Maradona! Diego Armando Maradona!

O jogo recomeçou pela lateral. Um dos gêmeos arremessou para o Igor, que rebateu pro Fábio numa bonita passada de peito. A diagonal em direção ao Vander foi interceptada por um carrinho de Hamílton que, num gesto de perdão, recuou a bola para o Daniel. Um espectro de paz arrepiou a todos, alguns aplaudiram. Mais calmo, meu irmão lançou pro Rodrigo, que tocou pro Suíno, que tocou para mim. Driblei o Igor e cruzei em direção ao Rafael, posicionado na lateral esquerda. O arco foi mal feito e à meia altura, mas o canhoto da turma evitou a saída com o calcanhar esticado por trás do corpo. Num belo lance, a bola passou por cima dele que, sem deixá-la cair, usou o joelho para aplicar o drible do chapéu no Vander. Impiedoso e sob os gritos de “olé no picolé”, passou o pé esquerdo sobre a pelota, se esquivou pra direita e deixou o Fábio no chão. Rapidamente, os gêmeos, na função de dupla de zaga para confundir o nosso ataque, chegaram para o combate. Numa jogada espetacular, Rafael travou a redonda na canhota. Sem freio, seus irmãos se trombaram. Ele partiu novamente pela esquerda e, antes do empurrão do Igor, desferiu uma bomba na direção do ângulo direito da meta adversária. André Dourado, o único que levava a posição de goleiro a sério, voou com os braços esticados, em vão. Que golaço!

Jamais esquecerei esse dia. Um dos gols mais bonitos que já vi, digno do autêntico Maradona. Feio foi o que aconteceu depois. Enquanto o nosso canhoto recuperava o equilíbrio e erguia os braços, a bola acertou uma moita, desviou rasteira e enganou o Mardem, o gandula da vez. Saltou no meio-fio, quicou três vezes no asfalto e cravou entre o pára-lama e a roda dianteira de uma lambreta que ia a aproximados sessenta quilômetros por hora. "Pelas barbas do profeta", gritamos em coro, quando a roda de trás empinou, transformando o veículo em uma catapulta que arremessou o condutor a muitos metros de distância. Pânico geral! As meninas tamparam os olhos. Os meninos correram para ver os detalhes. Ainda no chão, a vítima do primeiro gol do Rafael foi acudida pelos pais. Felizmente, o sexagenário que se arrastou pelo concreto não se machucou de forma grave, devido ao uso de capacete e traje apropriado. Assim, os primeiros socorros foram prestados antes de se ouvir a sirene. Quando a ambulância partiu, não havia a mínima condição psicológica para retomar o futebol. Pelos meus cálculos, contando a confusão inicial, a partida não passou dos cinco minutos. Uma tragédia sem precedentes. Em pranto, as damas partiram. Rafael coçava a cabeça sem parar, de um lado pro outro, inquieto. Alguns consolaram seus filhos. “Seu lugar não é aqui, é nas Laranjeiras”, ouvi do meu pai. E outros dias se passaram sem crianças na rua, sem fogos no céu, sem cantoria. Apenas um vento atrevido a bailar pelo cobogó.

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A tristeza é um parasita que reside na memória. Todos recordam onde estavam e o que faziam num determinado dia triste. Quando há reincidência temática, então, nem se fala. Doze anos depois do sexagenário se arrastar pelo asfalto, Brasil e França se reencontraram da forma em que muitos dos que estavam em campo sonharam, numa final e na casa do adversário. A diferença entre o sonho e a realidade é que na escalação do time não havia nenhum dos antigos amigos no gramado, e nem no banco de reservas. De alguns nunca mais tive notícias, mas sei que o Vander virou padeiro e o Hamílton administra um vídeo clube pornô. O canhoto da turma se tornou antropólogo e seus irmãos gêmeos continuam nos confundindo. Ambos são músicos, violinistas de orquestra. Alguns fizeram filhos, outros compraram cães. A maioria não mora mais por aqui. Eu mesmo passei dezessete primaveras em outros jardins, até voltar em meados do ano passado. São esses recortes no tempo que nos ensinam a velocidade dos dias.

Assisti a alguns jogos da Copa do Mundo de 1998 na Universidade de Brasília, onde cursava arquitetura e militava no movimento estudantil. Tempos de rebeldia. Meu ódio contra o sistema aumentava exponencialmente e se refletia em atitudes, gestos e vestimentas. Recordo dos meses que antecederam o início dos jogos. Em fins de março, pouco após o equinócio de outono, completei um mês em meu primeiro emprego, estagiário no Centro de Planejamentos da Universidade de Brasília.

- Cláudio, quando é que você vai me pagar? Já passou o primeiro mês.
- Não entrou o dinheiro na conta?
- Conta? Que papo é esse?
- Que papo é esse? Como assim? Todo mundo recebe o salário no banco. Eu avisei pra você abrir uma conta.
- Caralho. Esqueci!
- Tá avoado, hein?
- Ô Cláudio, abre uma exceção. Me paga aí. Eu odeio bancos.
- Não existe isso, Pedro. Pirou? E mais: quem te paga é a Universidade. E não eu.
- Então pede pra depositarem o meu salário na sua conta e você me repassa em notas de dez reais. É pouco mesmo.
- Não tô acreditando no que estou ouvindo. Vai lá resolver isso logo. O banco é logo ali. Vai. Vai.

Sai resmungando em voz baixa.

- Quero só ver se essa greve vingar. Eu é que não vou trabalhar! Eu é que não vou trabalhar!
- O que você disse?
- Eu disse que já tô indo lá. Eu disse que já tô indo lá. Tá surdo, chefe?
- Vê se compra umas roupas quando receber. Pelo menos um sapato. Esse chulé tá de lascar!

Alguns minutos depois, contrariado, cheguei ao banco para resolver aquela pendência. Minha tática era dar conta da situação o mais rápido possível. De preferência, sem ser visto por amigos de militância. Sob olhares, girei três vezes na porta de detector de metais até entrar. Eu realmente não queria fazer aquilo, mas retirei uma senha e sentei. Em uma televisão estava passando um especial sobre copas do mundo, uma espécie de contagem regressiva. Aproveitei para conferir a acusação do meu chefe. Discreto, levantei o pé até o nariz. “Já reparou que todo coro bom tem um cheiro de peido de vaca?”, comentei com um aposentado que me olhava estupefacto. A resposta foi imediata: “esse aí é do tempo em que o touro subia a montanha. Que saudade”. Demorei pra entender a charada, mas ri educadamente. Alguns minutos depois, discutia com o atendente.

- Você acha que eu não sei pra quem você trabalha? Não vou te passar os meus dados.
- É necessário, senhor. São normas.
- Quem é que criou essas normas?
- Não sei, senhor. Acho que elas sempre existiram.
- Antes do Big Bang, inclusive?
- Quê?
- Tá entendendo o que eu tô querendo dizer?
- Senhor, não tenho como abrir uma conta sem os seus dados.
- Vai dizer que não ganha comissão por dados obtidos?
- O que é isso, senhor. É parte de um cadastro obrigatório a todos. E seus dados são sigilosos.
- Conversa fiada.
- Meu senhor, confie em mim. Eu sou terceirizado e ganho muito pouco pra ficar ouvindo isso, revelou um funcionário completamente à vontade.
- Olha aqui, rapaz, duvido que seja menos do que vou ganhar, mas me identifiquei em você. Vou te passar os meus dados, mas se esta informação vazar eu volto aqui pra gente se entender. Captou?
- Fique tranqüilo, senhor.

Desconfiado, passei os meus dados. Após preencher o formulário, o bancário ainda veio com outra.

- Agora, senhor, a senha.
- Eu já te entreguei a senha. Tá de gozação com a minha cara?
- Não, senhor. Você me entregou a senha de atendimento. Eu estou falando da senha do cartão.
- Eu tenho mais o que fazer, companheiro. Passa logo o meu salário. Não quero cartão nenhum!
- Senhor, seu salário vai ser depositado na conta e você vai precisar de um cartão para retirar o dinheiro. E todo cartão tem uma senha, compreende? São normas. É assim que funciona.
- Mais que saco! Anota aí: abracadabra.
- Não, senhor, é uma senha de seis números e...
- Então anota aí: 2,2,0,1,7,7.
- Meu senhor, eu não posso saber a sua senha. Você deve digitá-la aqui. E pelo que eu tô vendo esse é o dia em que você nasceu. Não recomendamos o uso de datas significativas ao cliente, por questões de segurança.
- Tá vendo. Você já está usando os meus dados. E contra mim. Faz o seguinte: me empresta um papel, uma caneta e uma tesoura. E vira pra lá!
- Ave Maria, o que é que tá acontecendo aqui?

Não usar datas significativas é o cacete, pensei. Como é que eu iria lembrar depois? Escrevi em um papel o dia da publicação do Manifesto Comunista e o da morte de Che Guevara. Recortei cada número, dobrei os pedaços e pedi pro atendente retirar seis. “Já pode desvirar. Retire um de cada vez e depois passa pra mim. Não vale olhar”. Antes de sair, engoli os números restantes e criei uma lógica para memorizar as datas despedaçadas. Ora, se o banco tem suas normas de segurança, eu tenho as minhas.

Quando a copa começou, os professores e funcionários estavam em greve, tempo em que fiquei sem salário. Dediquei-me, noite e dia, à organização de um acampamento de estudantes no meio do Minhocão, prédio central da Universidade, em apoio às bandeiras de luta e pela formação de uma tríplice aliança. “Estudantes, professores e funcionários, uni-vos”, ouvi certa vez numa assembléia. Os acampados também construíram uma pauta de reivindicações, que não se restringia à defesa do ensino público e à questão salarial. Mais radicais, no discurso e na prática, para nós, cada barraca era uma trincheira na luta contra o capitalismo. Fomos um amargo chá de problemas para a reitoria e seus lacaios, ainda que sob alguns tropeços.

Durante os três meses em que a greve durou, morei numa barraca com a companheira Clarisse, dona de um humor singular. Ela e sua saia rodada, seu rosto rosado, repartido por duas tranças, sua blusa rendada acima do umbigo. Eu e minha estampa “hasta la victoria siempre”, ventilada no sovaco esquerdo, chinelos de couro e um imenso bigode. “Um amor nada convencional para os parâmetros burgueses”, gabávamos. O Fábio, aquele que não pode mais herdar o cabrito Zé Mané, e a Izabel, formavam outro casal original. Ele, bicho-grilo que andava aos trapos com sua vasta barba e cabeleira. A própria reencarnação de Cristo. Bastava-lhe um cajado e um sino para conquistar, enfim, o seu próprio rebanho. Ela, uma carioca, criada na Mangueira, ex-passista da Escola e vinte anos mais velha. Uma negra com todos os atributos da raça: guerreira, bela e autêntica. E estávamos lá com tantos outros, nas palavras de ordem, no aprendizado da ação política. Quem por ali passou deve ter visto um bigode atrás de um microfone, cantando uma música do Chico Buarque de Holanda com sutis alterações:

“chego a mudar de calçada
quando aparece o reitor
que dá risadas do professor
verdade”

Três dias após as semifinais da Copa, encontrei o Rodrigo Dourado saindo da sala de aula.

- Porra, Dourado, tá pelegando?
- Não tenho culpa. O professor não parou. Se eu perder essa matéria atraso o curso.
- Que filho da puta. Apareça na assembléia dos estudantes pra denunciar esse merda.
- Será?
- Claro, porra! Mas, me diz uma coisa, onde você vai assistir à final?
- Na casa da Renata. Estamos completando um ano de namoro e ela convidou uns amigos. Vamos nessa? Chama a Clarisse, o Fábio e a Izabel. É só levar a cerva.
- Se eu conheço a Renata, só vai dar filhinho de bacana lá. Sei não. Eu ando meio sem paciência com essas coisas.
- Deixa disso, Pedro. Também não é assim. Vai uma galera massa, pode acreditar. Vamos nessa!
- Pode ser. Pode ser. Até porque a televisão do acampamento está com problemas no sinal. A gente desconfia que é mais uma sabotagem da reitoria. Algum satélite foi desviado.
- Caralho, Pedro, que viagem. Você tá precisando dormir uns dias em casa.
- Você é que não tem idéia das coisas que andam acontecendo por aqui.
- Bom Bril resolve esse problema.
- Aí é que você se engana. Gastamos um pacote de Bom Bril em cada antena. É sabotagem, com certeza. Quanto ao jogo, respondo após consultar as bases.

Resolvemos aceitar o convite. As imagens em nosso aparelho pioraram ainda mais. O endereço indicado era num bairro nobre de Brasília. No caminho, compramos nossa cota de cerveja no atacado. Ao chegarmos, um primeiro detalhe, pouco comum na época, chamou a atenção do Fábio. “Vocês viram aquela mesa branca tomada de celulares pretos?”. “Essa casa é um ninho dos inimigos de classe”, emendou a Izabel. De fato, um extrato considerável da alta burguesia de Brasília se encontrava no ambiente, ou pelo menos pessoas que queriam se passar por tal. Fiquei puto com o Dourado, mas o início da partida estava próximo e seria deselegante partirmos. “Fica entre nós este desvio de conduta, ok?”, sugeri em uma reunião improvisada. Todos concordaram.

Stade de France Saint-Denis, 12 de julho de 1998. A seleção estava irreconhecível. Os nervos, à flor da pele. Não demorou, a partida irritou a Clarisse, que irritou os demais com seu brado fora de hora. “Allez France! Allez France! Allez France!”. Se a cada oportunidade ela repetia a interjeição, a cada repetição o pessoal ficava mais indignado: “alguém amordaça essa mulher”. Mas, ao contrário das cervejas, as reclamações não tiveram êxito. “Allez France! Brazucas mercenários! Allez France!”. Sem noção do perigo, Clarisse, aos poucos, se tornou o bode expiatório da raiva comum a todos, enquanto Zinedine Zidane começava a conquistar o status de maior vilão do Brasil em copas do mundo, com dois gols no primeiro tempo. No intervalo, tivemos uma conversa.

- Clarisse, me acompanhe. Vamos ali fora. O Rodrigo veio falar comigo. Tá todo mundo reclamando desse negócio de você gritar “allez France”. A Renata tá puta! Aquela amiga dela, mais ainda! Tá cheio de marombado aqui e isso vai dar merda!
- Você tá do lado deles!
- Não!
- Tá sim!
- Não tô, Clarisse.
- Vamos embora! Tô bêbada! Ihck. Esse jogo tá vendido.
- Dengo, preste atenção. O ambiente é desagradável, a seleção tá uma bosta, mas quero ver o segundo tempo. Conheço o Rodrigo desde criança e a gente combinou de ver esse jogo.
- Futebol é o ópio do povo! Você mesmo já me disse isso!
- Eu? Que é isso, Clarisse?! Tá, admito, mas é a final da copa. Alivia. Já te disse que a Seleção Brasileira e o Fluminense são as exceções à regra.
- Eu vi. Eu vi. Ela te olhando.
- Quê?
- Essa aí que você tá falando! A amiga da Renata.
- Tá louca?
- Eu vi. Ihck.

Era mais que necessário mudar o foco do diálogo, mas a tensão era inevitável.

- Dengo, me escute.
- Tô ouvindo.
- Você sabe quantos africanos morreram no período da clássica colonização francesa? Hein? Hein?
- Não mude de assunto. Por que você tá falando isso?
- Milhares, Clarisse! Milhares! Pergunta pra Izabel! Agora... Você tem idéia da carnificina que os franceses fizeram no Vietnã antes dos americanos? Hein? Hein? Hein?
- Calma!
- Você sabe quanto uma mutinacional de merda da França paga por hora a um trabalhador brasileiro? Hein? Hein? Hein? Já ouviu falar em Napoleão Bonaparte? Hein?
- Não briga comigo. Fala baixo.
- Você acha que eu tô dormindo na universidade porque concordo com tudo isso?
- Não. Não acho. Calma! Calma! Calma!

Foi quando explodi.

- Então, cacete! O que tá em jogo aqui é muito mais do que um campeonato de futebol, percebe? Todas as frentes de luta contra o imperialismo devem ser consideradas. Isso não é Brasil contra a França. Isso é oprimido contra opressor. Historicamente falando! Já perdemos pra eles no México, em 86, e basta. Eu quero mais que se fodam esses alienados que vestem a camisa do Brasil de quatro em quatro anos, representantes desse patriotismo pequeno burguês de merda, mas estamos em minoria.
- Você vai ter um treco. Ihck.

Aliviado, prossegui de modo mais doce.

- Dengo, eles estão nervosos, percebe? Outro dia você me deu uma bronca porque joguei bosta de cavalo na polícia, na manifestação, e tá achando que aqui é diferente?
- No dia do pombo desarranjado?
- É Clarisse! É Clarisse! Precisava lembrar deste detalhe?
- Adoro quando você fala assim. Repete!
- Deixe de ser boba.
- Já te disse que você fica bonitão de bigode? Parece o Zapata. Ihck.
- Outro dia você falou que eu tava parecido com o Sarney?
- Eu tava com raiva de você.
- Hum...
- Te amo, sabia?
- Eu também.
- Também não vale! Fala! Fala!
- Fala o que?
- Que me ama, ihck.
- Eu te amo, Clarisse.
- Não acredito!

Até que Clarisse se comportou durante o segundo tempo. Em compensação, cochichou “ihck, allez France” umas trezentas vezes no meu ouvido. O problema foi quando o jogo acabou e o fio desencapou de vez. “Allez France! Allez France! Allez France!”. Uma lata de cerveja foi arremessada em nossa direção e um princípio de briga se formou. A tal amiga da Renata teve que ser contida. Com um invejável teor alcoólico nas veias, ela apontava para nós dizendo que não éramos brasileiros, e ainda nos chamou de cambada de esquisitos. “Aí, filhote de pavão escovado, isso é racismo! Se não calar a boca eu vou te denunciar”, ameaçou Izabel, com seu sotaque carioca. O fato é que a perua encasquetou com a Clarisse, que se divertia cada vez mais. Ofensas à parte, o Fábio foi importante naquele momento. Acho que a sua semelhança com o suposto filho de Deus contribuiu para que os ânimos se acalmassem. Não sei o que ele disse do lado de lá, nem lembro do que foi dito do lado de cá, mas o choro virou coletivo, alguns se abraçaram. Pouco tempo depois, minha companheira e sua rival estavam sentadas no gramado, embriagadas numa longa conversa. “Isso ainda vai dar merda. Eu conheço a peça”, pensei, mas decidi continuar tomando cerveja, apesar da minha cota ter sido consumida ainda no primeiro tempo.

E não deu outra. O armistício foi interrompido, quando dois leões de chácara se aproximaram, seguraram a Clarisse e, sob os gritos de “Brasil. Brasil. Brasil”, a arremessaram na piscina. Foi tudo muito rápido. Com outros, tentei impedir, sem sucesso. Logo ela estava dentro d’água, puxando os cabelos e aplicando um caldo num dos agressores que já se encontrava na condição de vítima. Tampei o nariz e pulei. Sem a mínima chance de dar conta do sujeito, me empenhei em separar os dois. Com a cara toda arranhada, ele foi para uma borda. Fomos para a outra.

- Vamos embora, Clarisse. Vamos embora! Tava escrito que ia dar merda!
- Calma aí. Isso não vai ficar assim. Mas não vai mesmo!

Clarisse saiu d’água, torceu a saia, e, sem ajeitar o biquíni, correu em direção ao seu principal desafeto. Jurei que nunca mais discutiria com ela quando a vi aplicando uma voadora no peito da infeliz, que caiu desmaiada no chão. A tensão atingiu o seu ponto máximo. Por pouco a pancadaria não se generalizou. O Fábio, mais uma vez, conseguiu evitar o pior, com a ajuda de seguidores arrebanhados às pressas. Sob pequenos empurrões e grandes insultos, pegamos as quatro últimas latinhas de cerveja e demos no pé. Minha amizade com o Rodrigo, que não tomou parte a nosso favor, ficou abalada por uns tempos. Horas depois, de volta à barraca, por precaução, coloquei um travesseiro entre eu e a Clarisse antes de dormir. Os tormentos de um dia costumam invadir os sonhos. Mas, naquela noite, o silêncio no acampamento traduziu o sentimento coletivo de tristeza.

————— // —————

Não tenho dúvidas. Hei de lembrar da Clarisse, e de sua indiscutível vitória por nocaute, sempre que o Brasil jogar contra a França. Assim se fez, oito anos depois, na última Copa do Mundo. Um dia antes de mais um confronto entre as duas seleções, trocamos palavras e risos por telefone.

- Quer dizer que você resolveu assistir ao jogo sozinha?
- Talvez eu nem assista.
- Talvez seja melhor assim.
- Engraçadinho.

FIFA WF Stadion Frankfurt, Alemanha, primeiro de julho de 2006. O dia em que a escrita se consolidou. Mais uma eliminação do Brasil. Novamente pelos pés dos franceses. A terceira derrota em quatro confrontos na história das copas. O meu pai era uma criança quando vencemos a França, pela primeira e última vez. E Pelé, um adolescente de dezessete anos que encantou o mundo e ajudou o Brasil a conquistar o seu primeiro título. De lá pra cá muita coisa mudou. Confesso que não dei muita importância quando o juiz apitou a sentença. A Seleção jogava mal. A publicidade em torno dos jogadores se encontrava a níveis intoleráveis. O Galvão Bueno nem se fala. Mas o caso dele é outro, nasceu pra ser chato. O fato é que o resultado não me surpreendeu. E o meu maior lamento foi o cancelamento de uma roda de samba que acontecia após cada vitória.

Meses antes da copa, meu irmão começou o namoro com a Charlotte, uma simpática francesa que o carregou para Paris no verão seguinte. “Daniel, dá uma cabeçada no Zidane por mim”, foi a última coisa que lhe pedi ao me despedir. É claro que fui apresentado a muitos descendentes de Napoleão. Naquele primeiro de julho, assim que o jogo acabou, só pensava na Brigitte. Confesso que estava tomado de amores por ela. E nossos olhares, quando de encontro, por vezes denunciaram um desejo recíproco. “É um gesto antipatriótico, mas que se dane”, pensei, quando decidi telefonar. Conquistar pela primeira vez os carinhos dela não seria rendição. Seria um sincero acerto de contas.

- Alô. Brigitte?
- Pedru. Pedru. Allez France! Allez France!
- Parabéns Brigitte. Allez France pra você também. Você tá aonde?
- Em casa com amigus da Embaixada. Vem pra cá! Vem pra cá! Tá tocando sambá, sambá. Allez France! Allez France!
- Que absurdo!
- Quê?
- Nada não. Tem brasileiro aí?
- Tem. O garçom, Pedru. Vem, Pedru. Vem!

Que filhos da puta, pensei. Comemorar a vitória era justo. Mas, com samba, e servidos por um garçom brasileiro, era uma humilhação descabida. Uma herança do período clássico do imperialismo francês. A partir desta conclusão, minhas ações foram guiadas por um problema renitente: a capacidade de virar um idiota quando apaixonado por alguém. É tiro e queda. Bastou imaginar os lábios da Brigitte em câmera lenta. E aquele suculento biquinho francês pronunciando “vem, Pedru” acabou com quaisquer resquícios de orgulho em minha alma. Só precisava ter certeza do sucesso da empreitada.

- Brigitte. Preciso muito te ver. Vou levar umas cervejas que sobrou, ok? Só uma coisa: tô arrasado e vou precisar de um consolo especial, se é que você me entende?
- Não entendu, Pedru. Vem! Vem! Allez France!

Não estava disposto a perder a viagem. Sem escrúpulos, gastei todo o meu francês para ser compreendido na íntegra.

- Allez France. Alô, França. Monamur, telecoteco, bizu. Abajur, nheco-nheco com Pedru. Entende?
- Vem, Pedru. Vem. Sambu. Telecutecu. Allez France! Allez France!

É hoje, pensei. Liberdade, igualdade e fraternidade do jeito que o diabo gosta. Segui em direção à casa da Brigitte, recordando momentos vividos em circunstâncias idênticas. Só ela para me fazer conceder o perdão à Sócrates, à Zico, à Zagalo, à Júlio César, aos Ronaldinhos. À Napoleão Bonaparte, à Parreira, à tal amiga da Renata, à Zidane e até ao Galvão Bueno. Todos estavam no pacote de misericórdia, inclusive eu. A exceção era o Roberto Carlos. Agachar na hora do gol para ajeitar a meia é imperdoável. Mas, quando entrei naquela casa, tomado por um patriotismo pequeno burguês de merda, comecei a passar mal. Da Brigitte ganhei apenas dois “copus” com água e sal, e alguns cafunés. Do garçom, um pano úmido que pus na nuca. “Valeu, Severino. Nosso dia há de chegar”, agradeci, comovido. Quando a pressão voltou ao normal, fui pra casa e ainda dei carona para três franceses. Inacreditável. Pelo menos vomitei no jardim deles.

O último Francês que conheci se chama Antonio e toca contrabaixo acústico na mesma orquestra do Daniel, um dos gêmeos de Maria Helena. Antonio é presença garantida em algumas rodas de choro da cidade. Outro dia ele me contou que não pretende voltar pra França. Também, esse Brasil só lhe dá alegria. Hoje ele mora com o Daniel, que deixou a mãe aos cuidados do namorado e de duas cachorras barulhentas, a Laila e a Pretinha. Todos os dias elas me acordam em uníssono. É cada susto que tomo! O pior é que elas latem por qualquer motivo, a toda hora. Outro dia vi a Laila rosnando para um caramujo. A lembrança dos apuros que passei, após um amigo esmagar uma dessas criaturas, foi imediata. “Nem pense nisso”, gritei, enquanto esfregava os olhos para ter certeza de que aquilo estava acontecendo. Já o nome da Pretinha foi citado, na última reunião do bloco, como responsável pelo aparecimento de alguns excrementos nos fundos das casas, área comum a todos. Maria Helena, relatora na ocasião, apresentou recentemente a ata com uma pequena alteração de texto. E quem ouviu “o cocô da Pretinha” leu “o cocô dos cachorros da vizinhança”. Todos assinaram.

Às vezes também prego um susto nelas. Tenho a postos uma máscara veneziana de carnaval que é perfeita para essas ocasiões. Fico na espreita até elas saírem pro jardim ao lado. Na primeira pausa do latido, dou uma chinelada no chão, balanço os braços e grito: “Allez France! Allez France! Allez France!”. Não sei se elas assistiram à última copa, mas sempre se assustam, me olham e correm apavoradas pra dentro. Logo consigo alguns minutos de silêncio. Outro dia, num samba que fiz aqui em casa, o Daniel, que conviveu com essa desgraça por muito tempo, sugeriu que eu as envenenasse. “Minha mãe não vai suspeitar de você”, ouvi dele, enquanto afinava o violino. Depois de passar por problemas com o Eduardo, o outro vizinho de parede, não pude concordar com a proposta, embora tentadora e genial. Um filé de porco na manteiga, um pão francês e muito veneno, com páprica, para enganar o olfato apurado. O Daniel ainda me passou um detalhe importante: “não pode ser pão dormido porque elas não gostam”. Como garantia, concluí, uma azeitona em cada fatia, selecionadas conforme o tamanho dos caroços. Minha idéia era causar a obstrução da faringe, o que dificultaria, ainda mais, a respiração das cadelas: paz.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Capítulo I - A vingança do caramujo

Quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008, quase 21. Indignado com a atuação do Fluminense em sua estréia na Copa Libertadores da América, acompanhei dois amigos até a porta de casa sob calorosa discussão. A posição que defendia, a de que o nosso técnico errou ao mexer no time no momento em que apresentávamos maior perigo à defesa adversária, era refutada por aquele que mais tarde seria o responsável pela trágica seqüência de fatos que me manteria em pé até as 3h da madrugada. Seu nome, Rafael Perfeito, hoje me traz dúvidas quanto à coerência do adjetivo registrado em cartório. Já Maurício Pinheiro, arquiteto e sambista que trocou Copacabana por Brasília, carregado por uma cabrocha que o enlouqueceria até a inevitável separação, ora concordava com um, ora concordava com outro. Bom Cabelo, apelido conquistado nas rodas de samba da Lapa em função do curioso topete liso que ostentava um pouco acima do seu sete cordas, conciliava as opiniões: "acho que o técnico tinha que mexer, mas não naquele momento"; "0 X 0 não é o ideal, mas poderia ter sido pior"; "não adianta ter um ataque bom e uma defesa ruim, e o contrário também é verdade". Sem paciência, confesso que o que mais desejava era vê-los partir sob aquela tempestade, abraçados e teoricamente protegidos pelo único guarda-chuva que dispus. Esse seria o roteiro, algumas horas de sono e a amizade renasceria mais forte do que nunca.

Seria se aquele casal de caramujos não tivesse cruzado o nosso caminho até a porta. Caramujo, para quem não sabe, é uma espécie de lesma que carrega nas costas o sonho de milhares de brasileiros, a casa própria. Protegida do frio e de alguns predadores, a determinação desta concha ambulante me fascina. Nada a distrai. Nada a desvia de sua rota sempre marcada por um rastro de gosma. Dizem que em noite de lua cheia eles se expõem com menos cuidado, ficam mais vulneráveis. Até então não acreditava nisso. Enquanto meus amigos calçavam os sapatos, deixados na varanda para não levar lama à casa, os ânimos se acalmaram, pois o assunto agora era esse ser singular e, por vezes, portador involuntário da esquistossomose. "Que brinco da natureza", disse Perfeito, segurando a própria orelha. "O que será que eles comem?". "Sei lá! Nêsperas?", indaguei, olhando para o jardim. Que outros bichos carregam a própria casa?". "As tartarugas", disse Maurício. "Isso! Isso! Alguns mariscos também", acrescentou Perfeito. "Como será que eles se acasalam?". Disse que era de ladinho. Só pode ser! "Que nome bonito: ca – ra – mu – jo. Faz um samba, Pedro. Sente só esse refrão:"

“Caramujo é um bom marujo!
Sempre ajo como tal
Pra morena, ó meu lambujo
E pra brincar o carnaval”

Teria sido melhor não ter ouvido a pérola poética sugerida por Maurício, provavelmente sobre efeito da Síndrome de Bom Cabelo que vez em quando o ataca. Mas de fato a conversa estava boa, me agradava quando finalmente nos despedimos e o inesperado aconteceu. Perfeito, num distraído movimento, mudou para sempre os rumos daquela noite. Bastou um passo em direção à porta. Crack!

- Puta que o pariu! Você pisou no caramujo.
- Que porra é essa? Assassino!
- Não tinha visto esse! Não tinha visto!
- Como assim? A gente tá meia hora dizendo que é um casal.
- Era um casal!
- Mas eu tava olhando para aquele. Nem reparei. Juro! Juro!
- Pelo menos ele matou o menorzinho, disse o doutor das conciliações.
- Então, pela lógica, era o macho!

A piada sem graça do Perfeito foi o estopim:

- Cacete! Se não bastasse tagarelar durante o jogo ainda vem com piadas. Vá se catar!
- Já disse que não vi. Foi mal! Foi mal!
- Foi péssimo!

E Maurício não parava de rir.

- Na boa, moçada, tá na hora de vocês irem. Por hoje chega!
- Qual é, Pedro? É apenas um caramujo.
- É apenas um caramujo! É apenas o primeiro jogo! Muda o disco porra!
- Fui!

"Já vão tarde", pensei.

Resoluto, empurrei com educação aqueles dois vertebrados para fora de casa. Quando partiram tive a infelicidade de observar pouco abaixo de um dos calcanhares destroços do defunto, cerca de um terço de sua estrutura, não mais vital, ora levantava, ora era novamente esmagada no encontro com a calçada molhada. Triste fim, uma morte de causar pavor até aos seus parentes do velho continente, os vistosos escargots, iguaria francesa que definitivamente jamais provarei. Enquanto limpava o local do crime concordei que somente uma grande desarmonia entre o algoz e a natureza poderia explicar o ocorrido. Lembrei do dia em que atropelei três pombos na saída de um supermercado, em tempos de pouca fé. A imagem daquele que até então tinha sobrevivido, escalpelado, mancando sem uma das asas e me encarando pelo retrovisor até tombar após um último suspiro, ainda atormenta meus sonhos. Poucos dias depois, em uma manifestação de estudantes na Esplanada dos Ministérios, fui vítima de uma rajada de bostas de um pombo solitário. Puta merda! Vinte mil pessoas, um pombo desarranjado e logo na minha cabeça? "Que nível de organização têm essas criaturas", concluí antes de me limpar. Foi a partir desse dia que adquiri o péssimo hábito de rezar antes de dormir.

Casa trancada, hora do descanso, mas requisitei alguns minutos ao tempo para assistir a uma reportagem sobre as Ilhas Galápagos. Ainda bem que esqueci o aparelho ligado, pois sempre me interessei por este arquipélago onde Charles Darwin começou a duvidar da imutabilidade das espécies. Descobri que por lá existem tartarugas gigantes. Quanta ironia do destino! Numa interpretação exagerada das palavras de Maurício, seriam elas imensuráveis caramujos. Não tive como conter o desejo de ver uma dessas aberrações pisoteando o Perfeito, mas pelo que pude perceber elas não são grandes o suficiente. Que pena! Quanto à imutabilidade das espécies, após cruzar com um bicho desses até eu duvidaria.

Desliguei a televisão e pude me concentrar na música provocada pela água escorrendo pelo telhado. Como é bela a sinfonia dos sonhos! A chuva, ainda forte, me fez sorrir pela primeira e última vez naquela noite. Não existe nada melhor do que dormir em dias de temporal. A gente entra no cobertor e, simplesmente, apaga. Pena que aquela alegria se foi quando ao caminhar pelo corredor senti meus pés molhados.

- Puta que o pariu! Que porra é essa?

Sem compreender a dimensão do problema, olhei para o teto em busca de uma goteira, já pensando no tamanho do balde que teria que arrumar. Quanta ilusão... Ao olhar novamente para o chão, deparei-me com um rio passando entre o meu quarto e o escritório, ambientes divididos ao fim do corredor, mas integrados por um armário que atende a ambos. A cena de um taco do piso de madeira boiando me arrepiou dos pés à cabeça. Corri até o quarto de dormir e com os dedões afogados identifiquei uma nascente d’água brotando do alto do armário. No escritório, a mesma cena. Dois quartos inundados e uma situação completamente fora de controle. "É algum buraco no telhado, certamente provocado pela força da chuva que cai", pensei. Naquele momento veio à cabeça a bizarra imagem de um caramujo amarrado numa mesa cirúrgica de um cientista maluco. Este injetava, com uma agulha especial, pequenas gotas d’água na concha da cobaia. O olhar moribundo do pombo atropelado também atormentou os meus pensamentos: " Não acredito. É a vingança do caramujo! Mas já?".

Será que o caramujo tem por motivo de vingança o local do crime, ao contrário dos pombos que revidam diretamente no autor? Se imaginarmos o que aconteceu em câmera lenta é possível perceber que num primeiro momento a sua casa foi destruída: Crack! Num segundo momento, aí sim, veio a morte de fato: Blaft! Arregalei os olhos, pensando no pior. E o Perfeito, o verdadeiro assassino, sairá ileso? E o Maurício, que riu? Será que uma minhoca ao ser devorada por um pombo consegue, antes de ser moída no estômago, morder algum órgão vital do predador, ocasionando uma morte cuja causa é imperceptível aos legistas? Em surto, resolvi agir.

- Alô.
- Alô. Pai?
- Não, é a sua mãe. São quase 1h da manhã. Tá tudo bem?
- Tudo péssimo! Papai tá aí?
- O que foi, meu filho?
- Mãe, deixa eu falar com o papai. Tem um rio correndo entre o meu quarto e o escritório.
- O quê?
- A casa ta inundando! Chama o papai rápido! Rápido!
- Peraí, peraí... Orlaaaaannndo!

Eternos segundos depois:

- O que foi dessa vez, Pedro?
- Pai, fodeu! Não posso falar muito, mas o meu quarto e o escritório estão cheios d’água.
- Como assim?
- Sabe o armário que divide os quartos?
- Sei.
- Tá entrando muita água por ali. Vou subir no telhado. Só pode ser uma telha quebrada.
- Cuidado! To indo aí te ajudar. Me espera! Me espera!

Enquanto aguardava o socorro salvei parte da minha vida organizada no escritório. Violão, poemas, crônicas, CDs, inclusive alguns do grupo Batucada de Bamba, retratos, documentos, equipamentos eletrônicos, cartas de amor, projetos de arquitetura, entre outras tranqueiras, foram retirados do armário tomado pela água. Já contando com ajuda, em meu quarto, as roupas encharcadas foram levadas a um lugar seguro. Em cada gaveta, um drama. Caldo de cuecas, Ensopadinho de calças, camisas ao molho cury, aspecto esse criado a partir de uma rasteira que a água deu num frasco de xarope. Se não bastasse, fui novamente dominado pela emoção quando meu pai me mostrou um meião de futebol, nunca usado, manchado de verde e grená. Aquilo me causou um breve ataque de asma.

Respirando pesado, lembrei do meu avô sentado a dois passos da televisão, como costumava fazer aos domingos, assistindo aos jogos do Fluminense, com um cigarro de filtro arrancado na mão. Pensei no meu filho, que hoje teria sete anos, mas após quatro semanas de gestação não resistiu à dor da vida. Junto com ele se foi uma relação que parecia eterna. Lembrei da bola na trave da meta adversária após um petardo do Tiago Neves no início do segundo tempo. Se aquela bola tivesse entrado certamente eu não estaria passando por isso, pensei, pois continuaríamos bebendo, assistiríamos aos melhores momentos e o casal de caramujos teria o tempo suficiente para atravessar a varanda sem ser notado. Uma lágrima quedou-se quando compreendi que fazia parte de uma vingança justa. Somando a vez em que, quando criança, ceguei um curioso vira-lata na final de um campeonato de bolinha de gude, num desengonçado lance, esse já era o terceiro incoveniente do tipo. Um cachorro caolho, três pombos atropelados e agora não haveria de ser perdoado. Tive a certeza de que, como em sua morte observada em câmera lenta, o caramujo me mataria aos poucos, mas na medida exata.

- Pedro, Peeeeedrroo.
- Ahn?
- Vamos subir no telhado. Por enquanto não temos mais nada a fazer por aqui e a água continua entrando na casa.
- Vou pegar uma escada.

Subimos com dificuldade no telhado escorregadio. Juro que vi meu pai caindo, mas numa demonstração de bravura ele venceu o obstáculo. Com a ajuda da lua cheia, que mesmo escondida em espessas nuvens clareava a noite, chegamos ao entendimento de que nada havia de errado, nenhuma telha deslocada ou trincada, rufos e calhas devidamente alinhados. Com a hipótese principal descartada desci rapidamente, convencido de que algum cano estourado havia causado o transtorno. Como fui idiota por não ter fechado o registro! A cabeça dá tantas voltas numa situação como essa que a gente vira uma lesma. Aquela conclusão era a única que eu não poderia ter tido naquele momento. De repente ouvi meu pai em tom alto e assustador. Ele que ainda não havia descido estava agora espiando o terraço vizinho e aplicando um esporro sem precedentes em alguém.

- O que é que tá acontecendo aí, pai?
- Tem uma piscina no terraço do vizinho! A merda tá aqui!
- Puta que o pariu!

Novamente sobre o telhado colei meu pescoço no muro daquela casa geminada à nossa, porém com dois pavimentos. Logo vi o Eduardo e dois de seus filhos com água até o joelho. Pela cara de espanto dos três é certo que haviam acabado de descobrir que o terraço agora era uma piscina formada pela chuva. “Eureka! Essa aguá encontrou uma brecha e foi parar na casa do Pedro. Merda!”, deve ter pensado o meu pai, naquele momento mais indignado do que eu e gritando furioso com aquele que sempre tive consideração.

Eduardo nunca reclamou dos sambas que faço e às vezes até aparece para ensaiar uns passos esquisitos, não sem desaparecer misteriosamente. Acho que a religião dele não permite exageros. Outro dia enfrentei um engarrafamento por causa de uma marcha cristã em plena manhã de domingo de sol. Após uns 30 minutos suando em bicas alcancei o cortejo com um dedo na buzina e outro, mal educado, a postos. Preparado para garantir uma vaga no inferno, tive que me conter ao ver Eduardo levantando com as duas mãos a imagem de uma santa em um gesto idêntico ao inaugurado pelo capitão da seleção brasileira campeã do mundo em 1958, o inesquecível Bellini. Até hoje não sei quais são os interesses da Igreja ao se apoderar de tal gesto. Ainda tonto por lembranças, vi nos óculos embaçados do meu pai o Fluminense de 1995 e o nosso atual técnico marcando um golaço de barriga. Naquele lance vencemos o campeonato carioca, calando a torcida do Flamengo aos 44 minutos do segundo tempo. A recordação de Renato Gaúcho levantando o caneco me fez perdoá-lo. E já eram 2h da madrugada.

Acredito que as mágoas são como a água, escoam por algum lugar. O problema é quando resolvem escoar dentro da nossa casa, por conta de um único ralo de 15 cm em um terraço de 40 m2. Essa foi a causa da formação da piscina que transbordou sobre a laje do vizinho em direção ao armário. Provavelmente alguma folha de árvore, carregada às pressas por um caramujo, causou o entupimento. Senti que o Eduardo estava em apuros quando meu pai mandou ele descer para ver os danos causados por aquele erro de cálculo. Arquiteto experiente, se tem uma coisa que irrita o velho é obra mal feita. Ele fica puto!

Enquanto esteve lá em casa, o vizinho entrou mudo e saiu calado. Ao se despedir com um aceno tímido, meu pai deu o último recado, esforçando-se para ser educado: "espero que o senhor durma bem, porque a gente ainda vai demorar muito tempo pra limpar essa merda que você causou!". Tomado por um oportuno sentimento de amor ao próximo, olhei de lado para o Eduardo, que me entendeu e engoliu seco. Tenho certeza que qualquer coisa que ele dissesse seria o suficiente para o meu pai partir pro tapa. Ainda bem que nada disso aconteceu, pois ainda tínhamos muito trabalho pela frente.

Munidos de rodos, começamos a empurrar a água para fora. Do armário, poucos pingos indicavam que na causa o inconveniente estava solucionado. Dentre as conseqüências, ainda tivemos que carregar objetos que ficaram protegidos em altura: computador, livros e artesanatos decorativos. Depois de uma dessas nunca se sabe o que ainda pode acontecer. E por isso também retiramos alguns móveis, tanto do quarto quanto do escritório. Pela casa, meus pertences foram espalhados sem critério. Sapatos na banheira, livros no sofá, colchão na cozinha, roupas sobre a mesa de jantar, papéis em varais improvisados. Não sobrou uma cadeira livre para um rápido descanso. Agradeci ao meu pai quando ele partiu. No momento em que pisei naquela primeira poça d’água, tinha pensado em ligar para os amigos que haviam acabado de sair. Também agradeci por não ter feito isso. Era necessário o meu pai, que foi criado e me criou naquela casa. Sem ele as lembranças não seriam as mesmas.

Ninguém sabe qual será o último filme da vida, mas para mim é algo próximo do que estava vendo. De volta ao escritório, encontrei um caderno atrás de uma pesada estante que ficou. Ao abri-lo, não tive como me desviar do rascunho de um verso antigo:

“Se é verdade que o homem não nasceu para amar uma mulher somente
É verdade que a mulher não deve mais se preocupar em ser fiel com a gente
Toda ação tem sua reação na mesma proporção
E é por isso que somente uma mulher é dona do meu coração”

Faltava um minuto para as 3h da madrugada, e não me comoveu o refrão daquele samba que compus para amenizar os ciúmes de uma namorada. Exausto, nada mais importava. Que se dane a Terceira Lei de Newton, bocejei. E se a morte vier, ela que carregue as minhas coisas para o além, pois meus braços dormentes já não são capazes. Quando a luz provocada por um relâmpago atravessou a janela e produziu uma enorme sombra de caramujo à minha frente, sem olhar para trás, e consciente do meu fim, armei a rede sobre a madeira inchada.