“Vila Isabel inteira parou. O corpo foi levado para a igreja, teve missa de corpo presente. Depois voltou pra casa, porque, naquela época, os velórios eram feitos em casa. Tinha muita gente. Chegou até a desaparecer a bolsa de minha sogra, com documentos e tudo. Dias depois ela recebeu um telefonema para que fosse procurar a bolsa na Igreja Santa Rita de Cássia. Chegou lá e encontrou a bolsa com os documentos. Dinheiro que é bom, nenhum”.
O relato de Lindaura descreve parte do ocorrido no velório do seu marido. Sem chegar às três décadas, Queixinho, conforme apelido de infância, foi velado no bairro onde cresceu e viveu a maior parte dos seus dias. Se o fórceps, que o puxou do descanso materno, causou-lhe o afundamento do queixo e a piada de amigos, sabe-se que Queixinho nunca caminhou triste, com olhar cabisbaixo, ou se escondeu devido à notável deformidade.
Enganam-se os que atribuem ao violão a solução encontrada para um suposto isolamento social por feiúra. Os relatos daqueles que o conheceram nos ensinam outra história. Tratava-se de um peralta, admirado por muitos. De um contestador da disciplina religiosa do colégio São Bento. De um apaixonado pelas meninas, algumas registradas em desenhos não comportados. De alguém que desde cedo demonstrou sua vocação para a rima, sempre sedenta de cotidiano.
Sob o apito da fábrica de tecidos nasceu o piadista, o traquina, o líder da rua. Vinte e sete anos depois, sob o repique dos sinos da Igreja Santa Rita de Cássia, foi rezada, em sua homenagem, a missa de corpo presente. Na minha opinião, Queixinho foi o compositor mais importante da história de nossa música popular. O Rio de Janeiro das décadas de trinta e de quarenta está registrado em sua obra. Podemos dizer que muito do Brasil se compreende a partir dos seus versos. No último verão, pude caminhar por algumas partituras, petrificadas em sua homenagem na calçada da avenida principal do bairro de Vila Isabel. Ou melhor, o bairro de Queixinho, o bairro de Noel.
Quero uma fita amarela gravada com o nome dela”
Lançado em 2006, o longa-metragem “Noel - poeta da vila” é mais um exemplo do uso de uma forma de linguagem à qual muitos recorrem ao reproduzir a vida e a obra de personagens históricos: a caricatura. A impressão que fica é a de que Noel viveu em função da boemia, de sua polêmica com Wilson Batista, de seu amor por Ceci, uma bela dançarina de cabaré, e de seus problemas de saúde. Como se ele tivesse dedicado sessenta músicas para cada um dos temas. Todos sabem que são fatos marcantes em sua vida, mas insistir nestes é o mesmo que impor a imagem do menino constrito ao seu queixo afundado. Os diálogos do filme são pueris e, os personagens, repletos de trejeitos. Os melhores momentos ficaram por conta do pai de Noel, um inventor de utensílios para o cotidiano, e das coxas de Ceci, no caso, de sua intérprete, Camila Pitanga. Ceci foi de fato a grande paixão do Poeta da Vila, mas não a única fonte de inspiração em matéria de amor.
Já os malandros da Lapa antiga, retratados no filme, desanimam qualquer aspirante ao ofício. Malandro que é malandro não entra no boteco sorrindo à toa, dando peteleco em orelhas, ou posando de conquistador de mulheres. Isso é papel do babaca. “Deixa de arrastar o seu tamanco”, já pedia Noel. O verdadeiro malandro age quieto, não divulga. Se acusado, nega. Sob provas, não assume. Pela honra, reage. Sendo preciso, corre. É guiado por objetivos específicos, e nem sempre tem na malandragem o seu ideal de vida, ainda que possa levar a vida na malandragem. Eis o relato de um autêntico malandro, discípulo do Sete Coroas, considerado por muitos o maior espécime do gênero que a Lapa já conheceu. Sete Coroas morreu em 1923 e não chegou a ver a maioria dos feitos de seu aprendiz, João Francisco dos Santos. A entrevista concedida à revista O Pasquim data de abril de 1971.
“Eu fui acusado de ter matado o falecido compositor Geraldo Pereira com um soco. Mas o caso foi o seguinte: eu entrei no Capela e estava sentado, tomando um chope. Ele chegou com uma amante dele, pediu dois chopes e sentou ao meu lado. Aí tomou uns goles do chope e cismou que eu tinha que tomar o chope dele e ele tinha que tomar o meu. Ele pegou o meu copo e eu disse pra ele: ‘olha, esse copo é meu’. Então eu peguei o meu copo e levei para a minha mesa. Aí ele levantou e chamou pra briga. Disse uma porção de desaforos, uma porção de palavras obscenas, eu não sei nem dizer essas coisas. Aí eu perdi a paciência, dei um soco nele, ele caiu com a cabeça no meio fio e morreu. Mas ele morreu por desleixo do médico, porque foi para a assistência vivo”.
Não se sabe o que passou pela cabeça de Geraldo Pereira ao provocar João Francisco dos Santos, conhecido por todos como Madame Satã. O prejuízo que um copo de chope causou para a Música Popular Brasileira é imensurável. Ninguém duvide de que o compositor de clássicos do samba, como Escurinha e Falsa Baiana, vacilou. Todos conheciam a fama do discípulo de Sete Coroas, homossexual que não levava desaforo pra casa, mas que conquistou admiradores e respeito ao defender vítimas da opressão da polícia e da ação de assaltantes. Para muitos, foi um herói do baixo meretrício. Tratava o mal pela raiz, regava os próprios pés. Nas aproximadas três mil confusões registradas em seu nome, constam três assassinatos, os quais reconheceu o envolvimento, sempre com a admirável capacidade de negar a culpa. Em O Pasquim, lê-se que a morte de um guarda-civil foi causada por um disparo casual de seu revólver. “A bala fez o buraco, quem matou foi Deus”, explicou o protetor dos desvalidos, que, por essas e outras, passou vinte e seis anos no Presídio de Ilha Grande. Noel Rosa também conheceu Madame Satã, conforme registrou no samba “Mulato Bamba”, lançado por Mário Reis, em 1931.
E sabe fazer frente a qualquer valente
Conforme fontes próximas, uma única pessoa foi capaz de encarar Madame Satã, mano a mano, e vencer o duelo. Seu nome é Guynemer Brasil, um malandro de linhagem pouco conhecida. Pelo que sei, o suposto valente descende dos povos celtas, famosos pela fúria e pelas conquistas mundo afora. Isso explicaria, em parte, a origem da violência com a qual teria desferido seguidos golpes de capoeira em Satã, antes de desaparecer por detrás dos Arcos da Lapa. Forças ocultas sugerem que um rosto, desenhado à navalha e deformado por socos, em uma das paredes do já desativado presídio de Ilha Grande, corresponde ao de Guynemer. Envolto em pesquisas sobre este personagem, descobri que seu pai, Néri Castorino, fugiu a galope de São Paulo com Maria Augusta nas costas, uma adolescente de treze anos de idade. Eram fins de 1916, e a fuga se fez necessária depois que Néri resgatou a sua amada ao pé do altar, evitando que ela se casasse com o seu rival. Encomendados pelo noivo traído, batalhões de jagunços foram enviados aos quatro cantos do Estado, mas a rota dos apaixonados havia sido traçada com esmero. Uma semana depois, alguém deve ter visto um estranho casal e um cavalo ofegante procurando hospedagem na Rua do Lavradio. Maria Augusta ainda vestia véu e grinalda quando conheceu as entranhas do Rio de Janeiro. Um ano depois, nasceu Guynemer.
Em minha única fonte de pesquisa, momentos após o confronto com Madame Satã, Guynemer tirou o bigode e inverteu a direção do penteado. Malandro que era, não procurava briga, também nunca se esquivou quando necessária. O motivo do duelo com Satã teria sido uma proposta indecorosa. Em defesa da honra, o rapaz franzino reagiu de imediato. Consta, nos autos do meu estudo, que por conseqüência da repercussão da briga, ainda que sob disfarce, Guynemer ficou um tempo sem freqüentar a Lapa. Depois, escondia o lenço no pescoço por trás de seu jaleco de médico. Uma coisa é certa: seguindo os passos do pai, ele também arrebatou sua amada em um golpe de malandragem. Em uma noite sem luar, disputou com outro médico de plantão uma rápida partida de xadrez. “Ao vencedor, o direito de prestar atendimento àquela dama”, combinaram. Tudo indica que Guynemer sabia que o seu destino estava escrito no tabuleiro. Em um momento de distração do oponente, arremessou pela janela um bispo e dois peões que ameaçavam a sua rainha. Sem a prova do crime por perto, não precisou dar maiores explicações, e venceu a partida. E foi assim que ele conheceu Anileda, minha avó materna. Dia desses, resolvi tirar a limpo essa história.
- Vovô, você bateu ou não bateu em Madame Satã?
- Não lembro, não lembro.
- Mas você freqüentou a Lapa na década de trinta?
- A partir dos doze anos de idade e até conhecer sua avó. Já te falei que eu me casei com ela no dia da final da Copa de 50?
- Leonel?
- Ah. Eu tinha quatorze anos quando comecei a freqüentar Vila Isabel e conheci Noel.
- É. Todo mundo gostava do Noel. Sempre sentado no “Conto de Réis”. Algumas vezes ele me convidou para beber e ouvir algumas de suas músicas.
- Que inveja, vovô. Que inveja! E Ceci, o grande amor de Noel, você a conheceu?
- Pessoalmente, não. Mas a vi diversas vezes caminhando pela Lapa. Infelizmente, eu era muito novo para assistir às apresentações da Dama do Cabaré. O baixo meretrício tinha suas regras.
- Já te contei o que aconteceu no dia em que conheci a sua avó?
- Só mesmo uma mulher pra consertar um malandro, não é vovô? Ainda bem que Madame Satã não te acertou um murro. Já pensou se você se apaixonasse por ela? Ou ele? Eu não estaria vivo.
- Vovô, você viu o filme que saiu sobre a vida de Noel?
- Não.
- Ai.
Apesar de pouco esclarecedora, a conversa me fez recordar do dia em que conheci Camila Pitanga. Foi no carnaval carioca de 2004, próximo ao Forte de Copacabana, na concentração do bloco Flor do Sereno. Lembro que naquele início de ano eu decidi estudar astronomia, decisão que não durou muito. Sempre me interessei pelo movimento dos astros. Quando criança, por vezes sonhei que rompia a estratosfera pilotando um pequeno balão movido a hélio. O fato é que os mistérios da ciência me encantavam como nunca e, de alguma forma, se embaralhavam em minha imaginação. Naquele carnaval sai fantasiado de Júlio Verne, antigo escritor francês conhecido por suas obras de ficção científica. Quando na adolescência, li três de seus livros: A volta ao mundo em oitenta dias, Viagem ao centro da terra e Vinte mil léguas submarinas.
Foi divertido montar a fantasia de Júlio Verne. Em uma loja de brinquedos, no Largo do Machado, comprei uma bola de plástico, de cerca de um metro de diâmetro. Em uma feira de antiquários, na Rua do Lavradio, comprei um balaio, uma máscara de mergulho e um capacete de aviador. Consegui com um camelô, a preço de estoque, alguns arames e um suspensório, itens necessários à idéia. Com os fios de aço amarrados no capacete, fixei a bola acima da cabeça. Furei o balaio para o encaixe das pernas e amarrei os suspensórios para o ajuste do corpo, a exemplo dos palhaços de calças largas. Bastou-me colocar a máscara e o capacete para virar o piloto do meu balão, como nos sonhos, como em muitas viagens dos personagens de Júlio Verne.
Brincar o carnaval é coisa séria. Não adianta sair de padre sem rezar a missa. Sair de bailarina sem andar na ponta dos pés. Sair de cozinheiro sem ensinar receitas. Sair de Júlio Verne sem histórias pra contar. Minha fantasia se completou com uma barba postiça e um cabo de vassoura fixado no balaio, a alavanca de direção, uma invenção própria e necessária aos passeios terrestres. Quando vi Camila Pitanga, manobrei o meu balão ao seu encontro, com a coragem de nove latas de cerveja.
- Bip, bip. E aí doutora, quer uma carona pro céu?
- Não, obrigada. Tenho medo de altura.
- Não, obrigada. Tenho medo de altura.
- Pode confiar. Eu sou o Júlio Verne, escritor francês.
- Noel Rosa?
- Isso mesmo. Vou participar de um filme sobre a vida de Noel. Pelo roteiro, o pai dele foi um inventor. As gravações não começaram por falta de recursos, mas o filme vai sair. O que faz por aqui, seu Verme?
- É Verne. Verne! Passei alguns dias no centro da terra. Aí veio a tal da Lei Seca. Calor sem cerveja não dá, né? Então, comprei um submarino e viajei vinte mil léguas até chegar ao Japão. Tive dificuldades com o idioma e resolvi partir. Então, comprei um balão, decidido a conhecer o Brasil. Quando avistei os canhões do Forte de Copacabana, me assustei. Fiz uma manobra arriscada, esbarrei no bondinho do Pão de Açúcar e me esborrachei no chão. Tem um band-aid aí? Ai. Ai.
- Olha só, esqueci minha mala de curativos. O papo tá bom, mas preciso encontrar o meu marido.
- Engraçadinho. Sem chances.
- Bom, pelo menos, um autógrafo?
- Bom, pelo menos, um autógrafo?
- Claro que sim. Aonde?
Agachei e apontei para o balão. Em posição privilegiada, admirei aquelas belas coxas. Camila Pitanga autografou e desapareceu para todo o sempre. Segui o bloco pela beira mar. Pouco depois, através do meu reflexo no vidro de um carro engavetado entre os foliões, pude ler o autógrafo concedido: agnatip alimac, lavanrac od emrev oa.
- Caralho! Você pode me dizer que porra é essa? Perguntei para um que passava fantasiado de palhaço.
- Qual é o problema, Pequeno Príncipe?
- Qual é o problema, Pequeno Príncipe?
- Camarada Bozo, eu sou o Júlio Verme, compreende? Deixa pra lá. Você, que já rodou o mundo fazendo gracinhas, pode traduzir o que está escrito no balão?
- Ao verme do carnaval, Camila Pitanga.
- Seu verme...
- É Verne! É Verne!
- Seu Verne, pelo reflexo a gente tem que ler de trás pra frente.
Às vezes me pego pensando em alguns fatos que me ligam ao Poeta da Vila, sendo um deles o meu avô Guynemer. Como tudo na vida tem o seu lado ridículo, o meu primeiro caderno de estudante de arquitetura, por exemplo, contém versos escritos no ano de 1995, quando compor mais músicas do que Noel se tornou um desafio em minha vida. Obcecado, acreditava que também não passaria dos vinte e sete anos de idade, e corria contra o tempo. Hoje, quatro anos após o dia em que não morri, me contento com um disco gravado e alguns sambas na gaveta. Minhas andanças pelo baixo meretrício de Brasília também trazem coincidências. Se Camila Pitanga interpretou Ceci dois anos após me humilhar no carnaval de 2004, Cammila da Silva cumpriu o papel de primeira mulher em minha vida, dez anos antes. Conheci Catchúcia, nome de guerra de Cammila, numa barraca de cachorro quente no Setor de Diversões Sul, na porta de um cabaré de quinta categoria, onde costumava parar com alguns amigos após as festas. À época, menor de idade e sem passaporte para a luz vermelha, não comia nada além de pão com salsicha, restando-me apenas a amizade com algumas profissionais. Numa noite de lua cheia, tomei uma decisão.
- Chega, rapaziada. Não quero passar a vida comendo cachorro-quente. Vamos levar umas mulheres lá pra casa onde eu morava, e que está vazia. Vou falar com Catchúcia para ver se ela faz um desconto e chama umas amigas. É hoje que arranco a pele!
Horas depois, encontrava-me imundo e ofegante, no mesmo quarto no qual dividi a infância com o meu irmão. No mesmo chão onde recentemente encontrei o meu primeiro caderno de arquitetura, molhado, após a chuva invadir alguns aposentos da casa a qual voltei a residir há cerca de um ano. Catchúcia se espantou com os meus sucessivos ataques de asma, ocasionados pela combinação da atividade física com a poeira da casa abandonada. É impossível esquecer daquela noite. As marcas dos tacos do piso de madeira ficaram dias nas minhas costas. Lembro que Catchúcia começou com o que chamou de “o balé do pecado original”, uma maravilha. Eu tremia como nunca, mordia os lábios e babava no cigarro. Naquele momento, reparei que ela não possuía o mindinho do pé esquerdo, motivo pelo o qual foi registrada no cartório com uma de suas consoantes dobradas. Cammila da Silva reclamou da dura vida que levava no meretrício, e me fascinou com a sua inteligência. Contei-lhe sobre a minha decisão de prestar vestibular para arquitetura. Ela confessou sua admiração por Oscar Niemeyer, insinuando ter sido o seu corpo fonte de inspiração do arquiteto. Abraçados, também conversamos sobre o capitalismo e sobre a necessidade de revolucionarmos o mundo, para que um dia ela não mais precisasse se prostituir. “Penso, logo existo, é piada. Me alimento, e assim existo pra pensar, eis a realidade”, ouvi, emocionado. Com lágrimas nos olhos, despedimo-nos sem beijos, ainda na varanda de casa.
- Cuida bem do professor. E se passar no vestibular, não deixe a lapiseira cair.
- Deixa de sacanagem, Catchúcia. Nunca tinha visto o treco ao vivo. Me assustei, e nada mais natural. O importante é que no final deu tudo certo, não é mesmo?
- Pedrinho, o que é isso?
- É sim. É um tipo de ameixa.
- Olha, tem um casal de caramujos subindo no pé de nêsperas.
- Também quero uma.
Pelo cobogó catei uma nêspera, ofereci. Ela comeu o que tinha pra comer, engasgou com o caroço, mas sorriu agradecida. Em seguida, partiu com as suas amigas, com os meus amigos, e com a minha mesada acumulada. Rastros de luz anunciaram o amanhecer. Antes de me ver coberto pela sombra dos dias, jurei nunca mais freqüentar o meretrício, nunca mais me servir da miséria humana. Em 1935, Noel jurou não mais amar Ceci pela décima vez.
Consta, em meu enrugado caderno de arquitetura, duas homenagens à Catchúcia: um verso e um croqui do meu primeiro projeto técnico, uma caixa de fósforos. Virei noites para executar a tarefa atribuída pelo professor Cláudio, o mesmo que me concedeu o primeiro emprego, anos depois. Ao propor a tarefa, ele argumentou que, antes de projetarmos obras de porte, teríamos que aprender a resolver pequenos problemas. Ninguém discordou. Na data combinada, apresentei o trabalho.
Relatei no Memorial Descritivo parte das inspirações do projeto. As fachadas de Catchúcia, na versão caixa de fósforos, foram desenhadas com perfeição. Para demonstração e eventuais dúvidas, levei uma maquete, ou uma pequena boneca pelada, modelo bailarina, cujas mãos descreviam um arco acima da cabeça, e o corpo se apoiava na ponta dos pés. “Trata-se de uma linha exclusiva para cabarés, o que não a impede de ser comercializada em todo o baixo meretrício, motéis ou casas do gênero”, expliquei à turma de calouros. A invenção era simples, mas genial. A cabeça dela podia ser arrancada para a reposição dos palitos, tornando a chama imortal. Já os palitos, caiam pelo mindinho ausente, após uma torcida no mamilo esquerdo. Esta foi a solução encontrada para a correção do defeito congênito de minha inspiração, pois a cabeça de cada palito a cair simulava um dedo com esmalte vermelho. As lixas para o risco foram detalhadas no corte longitudinal, visto que se encontravam nos dois orifícios entre as pernas, permitindo ao usuário livre escolha. “Nada melhor do que um cigarrinho após uma noite de amor”, encerrei de modo romântico a apresentação, antes da demonstração prática. Todos me olhavam embasbacados.
- E agora, com vocês: Catchúcia, a chama eterna.
Com um cigarro no canto da boca, torci o projetado mamilo esquerdo. Sob olhares de reprovação, introduzi o palito de fósforos em Catchúcia, sorrindo para quebrar o clima de tensão, especialmente a do professor. Apertei as nádegas de borracha e puxei o palito, riscando-o conforme os desenhos técnicos. A partir daí, a coisa esquentou. A chama se fez além do imaginado e atingiu o cabelo da boneca. “Socorro!”, gritei assustado, enquanto tentava conter o fogo que se espalhava. Não demorou, sua cabeça começou a derreter, e seus olhinhos viraram. Sussurros foram simulados na sala, desviando a minha atenção e a do professor, que deixou a lapiseira cair. Sequer me dei conta de que apertava o cigarro apagado contra os dentes, e franzia a testa, ao tempo em que balançava a bailarina numa tentativa de salvar a minha pele. Sem opção, arremessei-a pra longe. Como um balão rompendo a estratosfera, ela voou alto, e caiu ao pé da única evangélica da turma. “Santo Deus, livrai-nos de todo o mal”, ouvi o sermão, que, paradoxalmente, mais parecia ser a bronca do Satã. “Cala a boca, madame”, respondi alto. Alguns risos ecoaram, mas não me dei por vencido e pedi respeito. Fora de si, a beata deu um pontapé na boneca, que rebateu no teto e lançou labaredas sobre o professor. Este levantou indignado, desferindo esporros para todos os lados. Enfim, Catchúcia pôde repousar o seu corpo em chamas, como na noite em que a conheci em carne e osso, e sentimentos. “Não era pra ser assim”, jurei, com migalhas de fumo no canto da boca, enquanto refletia sobre os possíveis erros de cálculo. Decepcionado, guardei na sacola o que restou do corpo enfumaçado, para posterior autópsia. Puto da vida, o professor Cláudio me deu nota zero, e exigiu que eu refizesse o trabalho. Pela honra de Catchúcia, neguei de imediato. Sequer li o trecho do verso separado para o grand finale.
Enquanto eu lhe aguardava no portão
Vestindo o nosso amor com um bom libré
Trocando, em notas, minha agonia por refrão
Como jamais faria por outra qualquer”
Ano passado, descobri que Catchúcia não mudou de profissão. Se não bastasse, galgou posições na hierarquia do meretrício, e agora trabalha em um cabaré de luxo de Brasília. A notícia correu em uma reunião do Comitê Heterossexual dos Homens Sensíveis, o CH2S. O ponto de pauta foi a despedida de solteiro de um dos membros vitalícios da organização, que tem como objetivo lutar pelo direito do homem de exercer a sua sensibilidade, livre de rótulos e/ou piadas pejorativas. Dentre outras atribuições, o CH2S presta apoio moral irrestrito às vitimas de qualquer interpretação não dialética do ato de brochar ou ejacular precocemente. Ressalta-se que não questionamos os direitos das mulheres, conquistados com muita luta, apesar de usarmos o verbo contra elas em nossas sessões de terapia coletiva. Estas ocorrem com freqüência no Bar e Restaurante Beirute, anexo sul. Somos fiéis partidários da emancipação feminina, com a justa equiparação dos direitos e deveres das partes envolvidas na transmissão do gene humano. Por conseguinte, o CH2S repudia a radicalização de setores do movimento feminino, com sua absurda Teoria do Homem Máquina, pela a qual um homem não pode cometer falhas sob o risco de ser trocado por outro com tecnologia mais avançada. “O destino dos homens descartáveis é apodrecer no lixo. Uni-vos para reciclar nossas vidas, e que eles sirvam de alimento para os vermes”, li recentemente no manifesto da organização Ovários Unidos, OU.
Deste ponto de vista, classificar a ação do CH2S de contra insurgência é legítimo, e elas que tomem cuidado. Desde a proclamação da Teoria do Homem Máquina, filiaram-se aos nossos quadros inúmeros cornos, promíscuos, vítimas de maus tratos da mulher, alcoólatras, brochas, poetas, suicidas em potencial, profetas, viciados em rapé, entre outros homens que sofrem com as ranhuras e a insensibilidade do gênero oposto, na atual etapa de desenvolvimento das relações humanas. Como não poderia deixar de ser, nossas posições ideológicas também confrontam as convicções machistas enraizadas em nossa sociedade, e esse é o nosso diferencial quando comparados a outras organizações congêneres. Alguns artigos de nosso estatuto, em seu capítulo único, Dos direitos e Deveres Universais dos Homens Sensíveis, são esclarecedores.
Art. 1 - Todo homem tem o direito de ser sensível.
Art. 2 - Todo homem sensível tem o direito de exercer a sua sensibilidade sem ser taxado de bicha, pederasta, veado, boiola, rapariga ou termos afins.
Parágrafo único: Compreende-se por sensibilidade versos, serestas, trabalhos acadêmicos, prantos, futebol, baixo desempenho, cantadas, conversas de bar, sambas, buquê de flores, piadas sem graça, etc.
Art. 7 - Todo homem tem o direito de brochar.
Parágrafo único: Com base no princípio de direitos e deveres iguais, a mulher também é responsável pelo acontecimento.
Art. 15 - Todo homem tem o direito de virar um idiota quando apaixonado.
Art. 21 - Todo homem tem o direito à ejaculação precoce.
Art. 39 - Todo homem tem o direito de recorrer à própria natureza quando acometido pelos eventos enunciados nos artigos 7 e 21 do presente Estatuto.
§ 1o Compreende-se como a própria natureza os pés, a birra, a boca, o nariz, o ronco, a barba por fazer, as mãos, as orelhas, as cócegas etc.
§ 2o (Emenda emergencial consolidada no último Congresso): É vedada a utilização de utensílios fabricados pelo próprio homem, garantindo o princípio da concorrência justa, e evitando o fortalecimento da Teoria do Homem Máquina.
Art. 54 - Todo homem tem o direito de tirar um cochilo após o ato. Nestas ocasiões, deve ser respeitado um dos direitos universais das mulheres, o de conversar com as paredes.
Art. 67 - Com base no princípio do livre arbítrio, todo homem sensível demais tem o direito de não gostar de mulher e enroscar o bigode com outro homem.
Art. 68 - É vedada a filiação em nossa organização de homens que se enquadram na definição “sensível demais”, conforme Art. 67 do presente Estatuto, e com base no livre arbítrio.
Seguindo a minha jura de nunca mais freqüentar o meretrício, recusei o convite para participar da despedida de solteiro de Aderbal, identificado aqui por seu nome fictício, conforme orientações consolidadas no Artigo 93. Como homem sensível que é, Aderbal avisou a noiva e convidou o sogro para participar e financiar o evento. A minha presença se desfez no Beirute, para a decepção de muitos que me têm como referência dentro da organização. Coincidência ou não, pensei em Catchúcia naquele momento, sem imaginar que seria ela a atração principal da noite. Consta, na ata da 983o reunião do CH2S, o relato de Apollo, também identificado por seu nome fictício.
“Puta que o pariu, foi sinistro. O lugar era chique pra caralho, cheio de onda, cheio de regras. Tinha deputado, senador, gringo, juiz, uma verdadeira zona da alta patente. O sogro do Aderbal bancou uísque pra galera. Não demorou, estávamos todos alucinados. De repente as luzes principais se apagaram. Algumas putas passaram acendendo as velas nas mesas, deixando o ambiente sombrio, mas provocador. Do nada, uma luz neon se acendeu sobre um DJ que até então ninguém tinha visto. Um bate estaca começou a rolar e a parada virou uma boate com aquelas luzes que piscam e deformam o movimento das pessoas. A galera se animou. Tinha até nego rodando o paletó com a gravata na testa. De repente, um buraco se abriu no palco. Por um elevador hidráulico, subiu a atração principal da noite. Cumpadi, só vendo. Ela foi anunciada como a dama do cabaré. Era meio esquisita, mas gostosa pra caralho. Do nada, as luzes se acalmaram e começou a rolar a Nona Sinfonia de Beethoven. Foi quando ela começou a dançar um tal de ‘balé do pecado original’, conforme o DJ anunciou, uma maravilha. Ficou todo mundo babando com aquilo, mordendo os lábios. É impressionante como essa turma da alta patente gosta de putaria. Eu fiquei de cara com a quantidade de dinheiro arremessado no palco. Provavelmente tinha imposto nosso no meio. Aquilo durou alguns minutos até que o DJ parou a música e anunciou o nome de Aderbal, e o propósito dele estar ali. A mulher olhou para o Aderbal e o chamou para o palco, para participar do grand finale. Como alguns que estão aqui já sabem, pois viram, ele pipocou diante da presença do sogrão. Aí eu resolvi ver qual é. E corri em direção ao palco. Do nada, o maluco do DJ começou a tocar aquela música do Noel Rosa, acho que o nome é Último Desejo. Meu irmão, ninguém entendeu porra nenhuma. Acho que era uma espécie de prenúncio do fim, sei lá. Só sei que já estava no palco e a mulher se esfregava em mim, e se despia vagarosamente, arremessando as roupas num balaio. Ela tinha uma fruta, talvez uma ameixa, tatuada na virilha. Aí ela tirou a minha camisa e depois me derrubou no chão. Abriu a minha calça e enfiou a mão. Senti um tranco na bunda e uma ardência nos bagos. Foi quando percebi que ela, sem tirar as minhas calças, tinha arrancado a minha cueca. Caralho, nunca tinha visto coisa do tipo, foi cabuloso. Até o pé ela esfregou na minha cara. Aliás, nesse momento reparei que ela não tinha o mindinho de um dos pés, muito esquisito aquilo. Quando a música parou, fomos aplaudidos de pé. Eu tava todo descabelado e com o piso de madeira do palco desenhado nas costas, tamanha a pressão que ela exerceu sobre mim. Que mulher! Que mulher! Antes de descer do palco, peguei o sutiã dela no balaio e o ergui como um troféu. ‘Sutiã. Meu troféu!’, gritei, sob mais aplausos. Atendendo a pedidos, arremessei-o para o público. Aquela peça de vestuário rolou de nariz em nariz. Deputados, senadores, gringos, muitos a cheiraram, alguns a beijaram e até a esfregaram na própria cara. Quando chegou na nareba do sogro do Aderbal, gritaram que aquilo não era um sutiã, mas a minha cueca. Isso mesmo, a minha cueca tinha virado uma tira de pano. Vocês não vão acreditar, eu catei no balaio a minha cueca pensando que era o sutiã, e a arremessei sem perceber o erro. ‘Eca, uma galera cheirou a cueca’, gritou o DJ no microfone. Do nada, o cara colocou a Marcha Fúnebre pra tocar. Esse cara era demais. O sogro do Aderbal ficou completamente transtornado, pegou uma vela e tacou fogo no pano. Logo, uma fila monstruosa se formou no banheiro. O pior é que a cueca tava toda melada, peidada, sei lá. Essas coisas da vida. E foi isso”.
A vida é mesmo um tabuleiro de xadrez. Ceci foi o grande amor de Noel, que conhecia Madame Satã, que apanhou, ou não, do meu avô, que nunca viu Ceci dançar. Duas gerações depois, eu a vi dançar através de Camila Pitanga, sua intérprete no cinema. Se Camila Pitanga me judiou no carnaval de 2004, deduz-se que Ceci também judiou de mim, num misto de ficção científica e realidade. Considerando já estar provado que Catchúcia está para mim como Ceci está para Noel, bastaria um implante de um mindinho no pé esquerdo de Catchúcia para concluirmos que ela e Ceci são a mesma pessoa. O enxerto necessário já foi feito em meu primeiro projeto de arquitetura e, pela lógica, causou a anulação da consoante dobrada no verdadeiro nome de Catchúcia. A equação que comprova a teoria é simples, mas genial.
Camila = Camila = Ceci
A partir deste raciocínio, não restam dúvidas de que a principal coincidência entre mim e Noel Rosa é o fato de termos feito sambas inspirados em Ceci, minha chama imortal, nossa Dama do Cabaré. Agora que resolvi viver mais cem anos, quem sabe consigo ultrapassar a quantidade de composições do Poeta da Vila, ou Queixinho para os íntimos. Quem sabe com um golpe de malandragem. Quem sabe...
Às vezes, fico a imaginar como seriam as notícias do dia seguinte à minha morte:
Correio Braziliense, 13 de agosto de 2108.
“Compositor gagá martela o próprio queixo e se enforca com uma fita amarela.
O corpo foi encontrado dependurado numa nespereira, localizada na frente de sua casa, em avançado estado de putrefação devido à ação de um batalhão de caramujos, que se aproveitou da lambuja antes mesmo dos vermes. Sabe-se que o velhinho agiu quieto, sequer deixou cartas. A polícia suspeita de motivação passional. 'Quando descemos o cadáver da árvore, identificamos o nome Catchúcia gravado na imensa fita amarela. Também estamos investigando o que significa CH2S, sigla tatuada no braço do defunto. O que mais nos intriga é o largo sorriso com o qual o ancião foi encontrado, além do capacete de aviador que ele usava. Pela análise do carbono, a indumentária data do século XX. Acreditamos que seja uma relíquia da Segunda Guerra Mundial. Os peritos estão trabalhando no caso e o laudo deve sair em trinta dias. O corpo já foi liberado para a missa de corpo presente, mas ninguém apareceu pra buscá-lo', declarou de modo oportuno o delegado de plantão”.